A FILA DO IDOSO

“Saber viver cada idade segundo as exigências dela é a voz da própria sabedoria. Cada idade tem seu lado sombrio e luminoso; autêntico e falso. Essencial é saber viver o lado autêntico e luminoso de cada idade. O essencial é saber ser velho”. Tristão de Ataíde (Alceu Amoroso Lima).

Quando criança, eu estudava em uma escola pública. Era freqüentada principalmente por crianças da periferia. Na minha sala, só eu e mais 5 colegas é que íamos calçados a sala de aula. O restante, salvo algumas meninas, iam todos descalços, tal o nível de pobreza da turma. Na hora do recreio, havia outro contraste marcante. Alguns alunos traziam de casa seu lanche, uma minoria. Enquanto que outros corriam para formar a famigerada “fila da Sopa”. Esses meninos eram discriminados pelos colegas, professores e até pela direção.

Na atualidade, temos algo parecido, a fila do idoso. Aparentemente um privilégio consentido pela sociedade, aos que depois dos 60 anos, não são mais obrigados a ficar na fila normal dos mais jovens, obviamente isso economiza tempo para os sexagenários. Todavia, muitos deles se recusam a aceitar essa concessão, pois entendem, como sendo uma forma de revelar a todo mundo que os indivíduos da outra fila, são incapazes de desenvolver normalmente suas atividades, dado a faixa etária mais avançada.

O fato que pretendo narrar é justamente de uma situação vivenciada por mim em um dos supermercados de minha cidade, que curiosamente retrata o comportamento de um senhor beirando os setenta anos que estava na minha frente na fila dos indivíduos mais jovens.

Era uma tarde de sábado, o estabelecimento estava abarrotado de gente. Afinal, o salário da grande maioria das pessoas tinha sido pago naqueles dias e presumidamente, seus suprimentos básicos estavam no fim. Atrás desse “setentão” estava uma jovem senhora que se destacava tanto pela bela aparência física, quanto pela forma discreta de se vestir. Uma pessoa difícil de não ser notada pela maioria dos presentes.

Nosso “herói” imediatamente percebeu os atributos da jovem senhora. Falando numa tonalidade de voz acima do normal iniciou um assunto com o colega da frente. Procurando sempre que possível exaltar suas qualidades atléticas, intelectuais e principalmente sua virilidade. Movimentava as mãos, girava sobre os calcanhares e quando proferia alguma frase de maior efeito virava para trás, olhando de soslaio para ela, que estava logo atrás dele.

Ele vestia uma roupa extravagante: camiseta colorida bem colada ao corpo, colocada por dentro da calça. A barriga proeminente era comprimida por uma cinta bem apertada. Suas pernas se apresentavam desproporcionalmente finas em relação ao tronco. Uma pele branca, com manchas senis espalhadas pelo rosto denotava a idade real, apesar da cabeleira tingida de preto.

Não sei se foi o tempo de espera, ou a fala entediante, ou mesmo, o pretenso flerte que o senhor mais velho queria estabelecer. O fato que a moça em questão, disse inesperadamente: -Por que o senhor não vai para fila do idoso, nela não há ninguém? Ele empalideceu e respondeu incontinente: - Sou muito forte ainda, minha filha. Pois, desempenho minhas atribuições profissionais como qualquer jovem. A senhora é muito petulante em dirigir a palavra a minha pessoa com tanta grosseria...! Incontinente, ela baixou a cabeça e permaneceu em silêncio até ser atendida pelo caixa.

O sentimento de revolta de “nosso herói” é justificável, visto o descaso e o desprezo daquela jovem. Certamente, Foi grande a decepção sentida por ele, pela constatação do desinteresse e aversão que sua pessoa despertou no sexo oposto, apesar dos esforços para passar uma imagem de virilidade. Em nós outros, o efeito não foi muito diferente. Afinal, a terceira idade é uma realidade inexorável. Talvez, uma autocrítica mais acurada, não nos deixou vivenciar um vexame semelhante. Contudo, naquele momento uma pequena névoa de tristeza surgiu em nossos olhos cansados. Pois, também como nosso personagem, já passamos dos sessenta...!

João da Cruz
Enviado por João da Cruz em 05/04/2015
Reeditado em 18/09/2015
Código do texto: T5196004
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