E aí três pontinhos

E aí, num dia que tinha tudo pra ser como os outros, você se sente infeliz. Assim, subitamente, sentado num canto com seus onze melhores amigos que eram vinte quando abriu o maço talvez a meia hora, talvez a uma hora atrás. Algum transeunte qualquer se agacha ao seu lado e pergunta um “tudo bem” não muito interessado. Ele não se importa com a resposta, só está curioso, e você sabe disso, só está acostumado. Balbucia, portanto, um “sim, é só o cansaço”, diz que sua pressão baixou ou coisa que o valha. A pessoa segue a praxe: Lhe dá uns tapinhas nas costas, sorri levemente desapontada e se vai. Você acende mais um cigarro e pensa que não a desaponta por mal; a resposta é automática e não propositalmente imprecisa. Não faz uso dela porque simplesmente detesta as pessoas, seus tons condescendentes ou suas curiosidades mórbidas. Apenas não sabe dizer ao certo o que não está bem. Coisas demais não estão bem. É isso: para oferecer uma resposta satisfatória, teria que pegar o emaranhado de problemas, tristezas, decepções e dúvidas e estudá-lo pacientemente. Só que doeria e cansaria demais. Significaria abandonar uma zona de conforto não tão confortável assim, porém melhor do que a outra opção. Mais simples é sorrir amarelo, dar de ombros, fazer aquele gesto desdenhoso de “não é nada” com a mão... Táticas para que não quebrem seu muro e saibam que o emaranhado está lá.

E aí, numa pausa do descontentamento que sente, estranhas lembranças são regurgitadas. Alguém estava sentado num canto, parecendo sentir-se infeliz. Isso, por algum motivo, lhe incomodou. Você se agachou e, preocupado, lançou um “está tudo bem com você?”. Nesse momento, lamuriavam-se em seu ombro. Contavam da separação dos pais, da morte da avó, do estresse no trabalho, do casamento entrando em crise... Você as abraçava, enxugava lágrimas e dava sábios conselhos, como se isso fosse a única coisa que fizera da vida. Emocionava-se e alegrava-se a cada homem, mulher e criança que consolava e via sumir esquinas afora, caminhando novamente de cabeça erguida. Lembrou-se disso ali, encostado numa mureta pichada, acendendo outro cigarro na bituca do anterior, observando horizontes que há muito havia esquecido. Sozinho em meio essa gente toda, essa pressa tanta. Realmente chegou a pensar, um dia, que seria recompensado. Talvez nem fosse uma questão de recompensa, e sim de dar e receber, de alguma lei de retorno. Compreendeu tantos, tantas vezes. E outras tantas vezes precisou ser compreendido, como naquele momento. Mas a infelicidade foi embora. Não subitamente como chegou, mas do jeito que se cai no sono: de modo gradual. O resquício é algo como um desapontamento com a humanidade, por ela não ser mais humana. Por invariavelmente ser parte dela e se sentir decepcionado quando só o que fazia era ainda possuir tal humanidade em si. Mas chuva começa a cair. Sua alma é lavada.

E aí, num instante de calmaria e estranha paz interior, decide apenas esperar... Talvez um dia aparecesse alguém que realmente se importasse, que não quebrasse o muro nem o ignorasse, mas que questionasse sua existência e quisesse descobrir o que há do outro lado com o seu consentimento. Alguém disposto a estudar pacientemente o emaranhado com você, ou melhor: disposto também a jogá-lo pela janela e te convidar a dançar na chuva, com suas humanidades compatíveis, suas manias idênticas de ainda ter esperança, compaixão tudo mais. Isso passa. Isso passará. É o que repete a si mesmo. Até lá, só vai esperar. Carregar sua bagagem (você mesmo) por essa terra e esperar. O último cigarro, o café gelado pela metade, ciclos e ciclos. E você só vivendo com a espera no peito, atento a qualquer sinal, sopro de vida ou beijo de morte. O que vier primeiro.

E aí, três pontinhos.

Thainá Mocelin
Enviado por Thainá Mocelin em 08/04/2015
Código do texto: T5198963
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