ARES GUARATIBANOS

ARES GUARATIBANOS

BETO MACHADO

Gildo teve uma vontade descontrolada de ir a Barra de Guaratiba. Não viajava no balançar medonho do 867 havia mais de vinte anos. Não que houvesse todo esse tempo sem ter ido lá. Poucos meses atrás, aproveitara o evento de inauguração do Túnel da Grota Funda para fazer uma média com a esposa, fissurada em frutos do mar. Yolanda, funcionária pública municipal, conhecedora de todos os quadrantes do Gabinete do mandatário mor da Cidade Maravilhosa, assim como detecta, de imediato, seus quereres e os inoportunismos que o irritam, adorou a idéia do marido.

O melhor do cardápio do Tubarão, restaurante da orla, era o linguado à dorê crocante. Yolanda franziu a testa diante do preço, mas Astrogildo, mediante uma expressão facial que ela já conhecia bem a demoveu da desistência.

A tarde, acompanhada de um lindo céu de brigadeiro, brindou o almoço do casal com um brando odor de maresia e belas imagens dos mergulhões, pássaros marítimos que se banhavam e se fartavam, num exibicionismo irrefreável, dividindo com os banhistas aquela tal felicidade que habita as águas e as areias guaratibanas.

A fisionomia do motorista do ônibus não transmitiu segurança nem para Gildo, nem para as pessoas que formavam a fila. Aspecto de adolescente carente de afirmação, falando alto com os companheiros de profissão, ao redor da guarita do despachante, parecia mais um jovem “funkeiro” se comunicando com os amigos no baile.

O terminal rodoviário de Campo Grande abriga a maior diversidade sócio-cultural da região, onde se permeiam todas as linguagens coloquiais, principalmente nas madrugadas, até o clarear matinal.

Mas o que se espera de um condutor de transporte coletivo é um comportamento padrão pré-estabelecido não só pela empresa que o registra no seu quadro, mas pelo sistema detentor das concessões. Não era nada disso que assistiam os formadores da fila; futuros passageiros do 867, estacionado havia mais de meia hora, a espera do final da “palestra” dos rodoviários.

A viagem não foi o tormento que seu racional esperava.

---A tirar a alta velocidade nas curvas e as desobediências de alguns sinais vermelhos até que o “cabra” foi bem. ---pondera Astrogildo, preocupando-se muito mais em enfatizar os fatos positivos ocorridos no percurso.

Por ser um amante da flora, bem mais do que da fauna, deitou seus olhos no verde da margem da estrada e deixou-os, esquecidos até depois do Sítio do paisagista Roberto Burle Marx. O que voltou a lhe chamar a atenção foi o desfile dos “flamenguinhos”, pequenos caranguejos nas cores vermelha e preta, subindo e descendo das árvores do mangue, como se participassem de uma dança desconhecida pelos humanos. Gildo fotografou e fez vídeo de tudo. Não bastava-lhe a confiança na própria memória. Convinha documentar a beleza daquele bucólico caminho em direção ao mar. E o mar se aproximava com uma incrível velocidade imposta por um jovem que conduzia uma máquina de levar e trazer pessoas à praia. Depois de descer contornando o costão rochoso, separado da entrada da restinga da Marambaia apenas pela estrada, o ônibus ancora com todos a salvo, em fim, na praia da Barra de Guaratiba.

O calçadão da praia com escadarias de acesso às areias salpicadas de cadeiras e guarda sóis atraiu Gildo que começava a tentar decifrar o porquê daquela vontade de voltar ali. Desceu. Vacilou o pensar entre retirar o calçado para caminhar na areia, dando chance à água espumante de molhar-lhe os pés, e alugar um abrigo contra o sol, com direito a executar todas as missões do ócio, em total repouso. Lembrou que precisava escrever sua crônica do dia seguinte no jornal de sua Comunidade. O momento e a tranqüilidade lhes eram favoráveis e ele não podia perder aquela oportunidade oferecida pelo lugar. Voltou ao calçadão, se aboletou numa mesa de um quiosque, pediu uma latinha de cerveja, tirou da porchete um bloquinho de anotações e iniciou seu trabalho.

O tema principal da crônica foi “O Amor a beira mar”. Astrogildo evitou tocar em assuntos negativos como a falta d’água sofrida pelos moradores lá das grimpas do morro contornado por traiçoeiras águas mansas, ou buracos no asfalto, ou carros estacionados irregularmente, estorvando o transito, ou outros tão comuns nos quatro cantos do município, que poderiam confundir seus leitores, quanto a localização.

A inspiração de Gildo para escrever sua crônica surgiu em formato de um casal enamorado. A praia estava com uma freqüência decepcionantemente baixa. Mais ou menos uma dúzia de famílias aproveitando a ocasião para dar oportunidade às crianças de curtirem um banho de mar sem o atropelo das multidões de fins de semana ensolarados.

O casal desceu do calçadão por uma escada, feita com sacos de areia, próxima ao quiosque onde Gildo bebia, escrevia e observava tudo ao seu redor. O moço, muito alvo, corpo sarado, meia idade; ela, loura escultural de porte atlético e ao mesmo tempo feminina nas curvas e no andar e dificilmente teria alcançado os vinte e cinco anos. A dupla de atendentes do quiosque começou a cochichar, comparando-os a atores de telenovelas ou apresentadores de TVs de canais a cabo.

Os pombinhos mal puseram os pés na areia já demonstraram a quê vieram. Tava na cara que a intenção era causar. E causaram um tremendo alvoroço na pequena platéia e chamaram a atenção dos transeuntes do calçadão e da rua. Passava bem longe do pensamento do rapaz que alugou a cadeira e o guarda sol ao casal que ele veria tudo aquilo posto gratuitamente a sua frente.

Cada um retirou literalmente a roupa do outro e jogou na cadeira e correram para a água, exibindo, de mãos dadas, suas bundas branquelas, cujos movimentos atraiam os olhares de todos em prejuízo da beleza dos belos cabelos louros e esvoaçantes da mulher. Adentraram nas ondas que os cobriam e descobriam como se quisessem denunciar os atos obscenos praticados pelo casal atrevido ou destemido das sanções judiciais que aquelas atitudes lhes poderiam custar. Afinal de contas ali estavam crianças e pré-adolescentes, protegidos por Estatuto em vigor. Mas os enamorados estavam desligados do mundo real. E o deles, naquele instante, chamava-se Amor e Sexo. E a liberdade, nesse mundo deles, se mistura à libertinagem levando seus habitantes às raias da inconseqüência.

A revelia dos que se aprazeravam com a cena inusitada, alguém levou ao conhecimento da polícia o acontecido e o que poderia vir a acontecer. Os dois policiais da patrulha aguardaram o retorno dos “pombinhos” já saciados, e depois de assisti-los vestirem as roupas, deram a eles voz de prisão por praticar nudismo em praia onde não há permissão para fazê-lo. O prato estava cheio para Gildo se fartar. Seu talento de cronista deve ter lhe proporcionado mais uma daquelas obras primas que ele espalhava por vários jornais, blogs e sites literários. Seu sexto sentido sabia onde levá-lo. Por isso esteve naquele dia na Barra de Guaratiba, assistindo um caso de AMOR A BEIRA MAR.

Roberto Candido Machado
Enviado por Roberto Candido Machado em 13/04/2015
Código do texto: T5205670
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