RFUGIADOS beirando a GUERRA

O urubu tá com raiva do boi (leia: "urubu" - homem; "boi" - vaca)

E eu já sei que ele tem razão

É que o urubu tá querendo comer

Mas o boi não quer morrer

Não tem alimentação.

(Baiano e os Novos Caetanos) – Volume 1 - 1974

A vaca mugiu no curral e com os seus chifres em formato de trombone, vai caminhando de cabeça baixa. Para onde vai a vaca? Provavelmente esteja indo para o pasto que fica no cocuruto das morrarias onde o sol e a lua dormem. Lá, também moram corujas, jacus, grilos, cobras, anus, siriemas, urubus, sapos, carrapatos, bernes, lagartos, ratos, etc. Salvo os urubus que nasceram para praguejar e espreitar a vida de todos os demais bichos, a bicharada convive mais ou menos em harmonia.

Sempre despistando os olhos gordos dos algozes, ela investe sua equilibrada alimentação numa pastadinha aqui, arranca um fio de grama ali, dá outra pastadinha acolá. E assim vai limpando e pastando as gramíneas por onde passa; sobretudo porque sua incondicional fidelidade jamais lhe permitira ver e cobiçar o pasto majestoso, verde e viçoso além das cercas que lhe prende. Para onde vai a vaca? Se for para o pasto e pasto é qualquer lugar onde ela consegue grama e arbustos para pastar, no pasto ela já está. Então, para onde vai a vaca? Segue mansamente trocando as duas patas da frente pelas duas de trás. De vez em quando, levanta a cabeça, olha e analisa o caminho que leva ao cocuruto. Vai ela; mas antes uma paradinha para beber água no açude brejoso e lodento. Quanto trabalho e esforço é a caminhada desta vaca para chegar lá na parte alta do morro!

Caracol é exemplo de responsabilidade. Todas as tardes é a primeira a chegar à porteira e mascando, engolindo e trazendo de volta à boca a pasta verde, esparrama o corpanzil no chão e passa a noite ali mesmo. Quando pressente que seu dono está ultrapassando os limites de ordenha, sorrateiramente ela reprime a saída do leite de seus ubres, cuja finalidade é reservar alimento suficiente para satisfazer a gula do filho, que mesmo remoçado, em época de desmame e dando fortes cabeçadas, não larga as “tetas” avermelhadas da mãe.

Cada macaco desbrava os galho que possui; como Caracol pertence a outra espécie e não possui galho e com sua exuberância de corpo jamais consegue pular, ela sobe o cocuruto, fazendo voltas e mais voltas, deixando as marcas no terreno pisoteadas pelas suas duras patas que parecendo jogo de amarelinha, demarca a sua ciranda na trilha. Caracol é uma bailarina sem sapatilhas.

Fica por lá algumas horas, come o que ainda resta de grama, pois o cocuruto está cada dia mais limpo e antes que o sol e a lua aparecem pedindo morada, ela desce a ladeira de volta ao curral. Ano passado, esse ano, ano que vem, ontem, hoje, amanhã até sabe-se lá quando, essa será a sua sina. Nessas longas caminhadas de ida e volta, contrai uns carrapatos e bernes que, inevitavelmente, recompensam-lhe da carona com umas ferroadas no lombo, o que faz Caracol dar rabanadas de dor.

Os dotes dessa vaca são feitos por um par de chifres que são impotentes para defendê-la; muitos mugidos que ela mesma faz questão de não ouvir; quatro ubres que geram uma enorme quantidade de leite todos os dias, mas que pouco dele é destinado ao seu filho; um rabo com um chumaço de pelo na ponta que espanta mosquitos e moscas, mas que não espana a sujeira de seu corpo e o primordial: o caráter, o brio e a fidelidade incondicional de estar no curral com o clarão do dia pronta para ser ordenhada. Quanto orgulho seu dono deve ter dela! Todavia, ela poderia agir com traços de personalidade diferentes aos usuais da maioria de sua espécie, manipular ações rebeldes dentro do rebanho, pular cercas para invadir os territórios alheios, esconder todo o leite gerado a noite no momento da ordenha, comer toda a ração liberada para ela e os demais; porém ela sempre agia com respeito e moderação em relação ao rebanho e ao seu dono.

Quantas vezes ela se sensibilizou ao ouvir o ruído do cincerro marcando os passos de alguns, geralmente os mais novos; bem como, da forquilha triangular de madeira, estrangulado os pescoços dos rebeldes e arruaceiros. Quando isso acontecia escancaradamente aos seus olhos, cobrava-se ainda mais em ser uma vaca responsável e de bons modos; e uma das perguntas era: “qual será a minha reprimenda se o meu dono souber que às vezes escondo o leite para alimentar o meu filho, diminuindo o volume diário esperado por ele? Aqui, cada fujão-rebelde recebe a sua merecida recompensa. Misteriosamente, alguns somem para nunca mais mugir e ruminar nestes pastos.”

Lágrimas inundaram os seus olhos ao lembrar que um de seus filhos havia sumido sem deixar pistas de seu paradeiro. O touro esbelto, de andado espigado e estilo galanteador, era considerado garrote promissor e próprio para a renovação do rebanho. Os demais, (e não são nem três ou quatro e sim inúmeros), berraram pela última vez, para nunca mais berrar. Desses infelizes, Caracol faz questão de não lembrar.

- Às vezes as lembranças atordoam os sentimentos e a razão. O segredo dos fortes é ser rudes de recordações, assim mantém-se na caminhada em direção ao inusitado do nada; pois pensando muito, desistem! Entorpecem a mente e intoxicam o organismo com a celulose nada digerível do capim seco.

Suas melhores amigas são as garças, os anus e os gaviões. Mas nem tanto, porque quando está ruminando tranquila, recebe deles cada ferroada tão desnorteante, que a leva pensar quem são os piores: se são os carrapatos e bernes; ou as garças, anus e os gaviões. No entanto, estes limpavam-lhe o lombo e uma vez livres dos carrapatos e bernes, livrava-se também destas falsas espécies de amigos. Contudo, mesmo sendo ferroada, mantinha-se passiva sabendo que a luta diária pela sobrevivência é a conquista infinda de cada espécie e agindo assim, estava contribuindo para a manutenção daqueles seres vivos.

Caracol sumiu. Faz alguns meses que não aparece no curral. Em que cocuruto foi se alojar? Para onde foi àquela bondosa e subserviente vaca? Este é o zunzunzum constante no curral e nas cercanias. Bernes, anus, garças, carrapatos, mosquitos e moscas choram e lamentam o sumiço a todo instante. Ninguém sabe responder, exceto os bichos citados, que suscitam a ideia de que a vaca foi para o brejo, atolando até as pontas dos chifres. Seria a resposta confiável para o caso; ou, sentindo profunda saudade, errou a encruzilhada que leva ao curral, seguindo as passadas do filho?

Mutável Gambiarreiro
Enviado por Mutável Gambiarreiro em 04/05/2015
Reeditado em 06/05/2015
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