Religião Urbana

“Eu não me perdi, O sândalo perfuma o machado que-o feriu”

Depois de um show em algum lugar do Brasil, Renato foi perguntado em uma coletiva de imprensa:

– Então quê? És tu Elias?. .

– E disse: Não sou.

– És tu profeta? E respondeu: Não merda...

– Disseram-lhe pois: Quem és? para que demos resposta àqueles que nos enviaram; que dizes de ti mesmo?

Renato se levanta, irritadíssimo, empurra o microfone, acende um cigarro e vai embora dando as costas para os jornalistas.

De fato Renato nunca respondeu a última pergunta, e essa entrevista talvez jamais tenha acontecido. Porém, ele foi fundador de um movimento messiânico que perdura até hoje, a “Religião Urbana”.

Nele, verdades absolutas não existem, mas uma espécie de amor, esse quase divino, que é cantado como se fosse a própria lei, como se estabelecesse os limites daqueles que professam tal crença; essa é a doutrina central. É como se o tal amor cantado por Manfredini buscasse uma espécie de reconciliação com os mundos mais distantes, entre Eduardos e Mônicas, entre pais e filhos pródigos.

Pensar em tal proposta de reconciliação dos mundos com o seu real sentido de existência, e nas suas profundas e radicais implicações, seria pensar também na parte do mundo que possivelmente insistiria em não retornar da grande rebelião que o afastou do Amor. É pensar em como a reconciliação faria bem a tudo e a todos, e não somente em quem já proclama que viver no Amor faz a morte ser lucro, e que o despojar-se de tudo é o mais profundo status quo dos verdadeiros milionários. É pensar naqueles que insistem em viver por aqui sem entender que é preciso amar como se não houvesse amanhã, e ao próximo como a si mesmo.

Quando ouvi Renato Russo cantando pela primeira vez (e na interpretação inapreciável de minha tia) parecia que meu mundo de escola na semana e futebol no sábado, torcendo pra que o domingo conseguisse resistir ao começo do Programa do Faustão (o que lá em casa representava o anúncio do fim oficial do domingo e o começo do velório para o enterro na segunda) tinha se rompido; nunca ninguém falara do óbvio com mais classe; o amor não tinha feito tanto sentido em palavras como naquele momento; até a bíblia, cantado por ele em Monte Castelo, soava mais profunda que o modo como eu ouvia na igreja. Parecia ter alma…

Ao ouvir “gosto de ver você dormir, que nem criança com a boca aberta, o telefone chega sexta feira, aperta o passo por causa da garoa...” em O mundo anda tão complicado, vi que não havia cenas comuns na vida; existiam sim, cenas que Renato ainda não tinha letrado. O impacto foi profundo e instantâneo. Vi-me despido, como nos sonhos em que nos vemos nus, do nada, e que tentamos correr mas não saímos do lugar.

O triste, porém, me parece ser, que a Religião Urbana, ou a religião de Renato era a tristeza. Ela, resultado talvez do machado do vazio existencial que o feriu, deixava o aroma de sândalo no ar de quem, como eu, punha o disco na agulha pra ouvir música urbana.

Seu último disco, A tempestade, é na minha humilde e simplória apreciação, digno de canonização; é retrato de família pra mim e pra tantos que lembram das sua músicas como a trilha sonora de uma vida que não volta mais e de tanta gente que se foi, cedo demais…

Acho que o que eu mais gostaria de perguntar ao Renato não era se ele realmente era o Messias. Creio até que, com certo cinismo, comum aos santos que desconhecem sua santidade, ele riria de mim. Mas eu insistiria em perguntar, com muita reverência e cruzando os dedos para ouvir sua resposta, se antes de fechar o seu “Livro dos Dias” ele havia se encontrado com Ele, o Amor. Força Sempre!

por André Alves Castro

TEXTO PUBLICADO NO SITE COTIDIANIDADE

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Cotidianidade
Enviado por Cotidianidade em 05/05/2015
Reeditado em 05/05/2015
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