A crônica do poeta

O que têm alhos com bugalhos? O velho bruxo Machado de Assis diria que têm tudo: quando se trata da arte da crônica, o segredo é cozinhar alhos com bugalhos, o que quer que sejam bugalhos. Coser e cozer. Costurar bem os assuntos, cozinhá-los bem no mesmo panelão. E alhos irmanam-se a bugalhos. E a crônica vai-se tecendo. É o tipo de crônica que eu gostaria de praticar. Afinal, eu aprendi a escrever com Machado de Assis. Depois de Machado, conheci Mestre Graça: dobrei os joelhos diante do altar desse ateu religioso (nunca falou em Deus, mas nem era preciso: bastava-me a pureza da sua linguagem e de sua visão das coisas).

Eu sou um poeta e, se você me lê, espera encontrar o poeta. Ferreira Gullar é o grande poeta brasileiro de hoje, mas é triste quando se encontra numa crônica dele, não o poeta, mas o ressentido dos resmungos (“resmungos” é o termo que ele mesmo usa) políticos. Os jornalistas noticiem os fatos políticos. Os especialistas, comentem-nos. O poeta? Colha os pomos dourados do dia. Como Rubem Braga, o poeta da crônica. Publicou alguns versinhos de poeta amador. Poesia maior fazia nas crônicas. Nem é preciso lembrar que poesia maior não é aquela cheia de pompas, profunda, complexa. Manuel Bandeira se dizia poeta menor porque fazia poemas muito simples. Eram de qualidade superior. O meu amigo Luiz Vitor Martinello faz poemas muito bons, sem nenhum intelectualismo pernóstico (muleta de que eu mesmo já me servi).

O livro mais seco do escritor mais seco do Brasil – “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos – é um poema. Desde a primeira frase – “Na planície avermelhada os juazeiros alongavam duas manchas verdes” – se compõe de imagens, é poesia pura. Lembremos que um poema se compõe de uma ou mais imagens organizadas num campo delimitado. E que imagem é justamente o que o nome diz: é tudo o que vemos. Se vemos com as palavras, o autor criou imagens com essas palavras. Vemos e sentimos, até no organismo, a secura da terra e da gente de Graciliano Ramos. Com tão poucos recursos, com tanta secura, é capaz de criar tanta vida. Ao que aspiro, quando escrevo prosa, é à secura de Graciliano Ramos.

O homem bronco que não gostava de poesia, mas sabia de cor “Um Sorriso”, de Manuel Bandeira, um soneto de sabor clássico, e também outros poemas modernistas. Não gostava das rebarbas que enfeavam a face de muitas obras, dos excessos. Ia à essência, o nu, o núcleo da obra: era um poeta disfarçado. O cronista deve ser um poeta disfarçado. Qual é seu trabalho? Falar da vida que passa. É o bastante. É muito.