A Cidade não dorme

A cidade de São Paulo não dorme e suas luzes ofuscam a negritude do céu, transformando a lua num globo opaco. O seu Tietê, antigo espelho lunar, padece da elegância de outrora. No teu leito espíritos indígenas choram a pureza perdida. Animais banidos já não bebem a sua água, que corre como líquido fétido de um corpo em decomposição.

Outros rios e riachos ocultados e silenciosos na lápide negra de asfalto. Prece silenciosa de uma cidade que um dia existiu.

Nos seus hospitais, modernos ou antigos, a dor e a solidão são gêmeas siamesas na luxúria e na indigência. Caminho final, despedidas iminentes.

Em lugares mais sombrios, a derradeira e dolorida cerimônia iluminada sob a luz vacilante de velas que, aos poucos, se apagam como a vida derretida. Personagens que saem de cena com ou sem aplausos. Lágrimas, memórias e insegurança na vigília.

Zumbis se contorcem a procura do sono fugitivo, sem paradeiro. Medo e solidão noturna. A neura descansa sob o sol e grita na escuridão da noite. O pânico, tal qual um boêmio, prefere a vida noturna.

Em becos a fumaça convertida em neblina e o vício etílico produzem visões turvas, imagens distorcidas, ilusão. Conversas desconexas, risadas desvairadas. Estranha liberdade de escravos mutilados. Demência produzida com modernidade. Desconstrução.

A música alegre embala a mulher melancólica, disfarçada de moça, moderna, descolada, que ainda sonha em ser esposa e mãe. Desilusões e produtos descartáveis no ferro velho da vida.

Jovens armados de gracejos caçam beijos erotizados e sexo sem romance. Anônimos que não trocam nomes e cujas palavras são lampejos ofegantes de bocas entrelaçadas. No fundo, cada segundo é eterno, mesmos os descartáveis. Cada página escrita é única, sem volta.

O sexo de graça sai caro se a proteção não for boa. O sexo pago, nem sempre tem graça. A mulher vendida para o vício promove liquidação do corpo dilacerado nas batalhas e cujo preço não paga o valor perdido. A cada transação financeira e sexual, o troco são lágrimas de uma vida lançada no bueiro.

Numa noite, uma índia também chorou a vida que perdia o valor e olhou para as águas do Velho Tamanduateí. Ela sabia que um dia não estaria mais aqui, mas que o rio seria uma eterna lembrança da sua vida.

Há muito tempo, aqui mesmo, nesta cidade, grilos e outros bichos eram os cantores da madrugada. Hoje, outra cidade no mesmo chão, sons e personagens diferentes. A noite continua amiga da vertigem, mas o grilo já não canta aqui.

Valdecir Donizeti
Enviado por Valdecir Donizeti em 08/06/2015
Reeditado em 13/06/2015
Código do texto: T5270681
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