DEUS NEGRO

A cada dia me convenço mais de que a cegonha que me entregou à minha mãe em 1954 era míope. Tenho quase que certeza de que no cantinho, onde eu me encontrava, havia uma placa indicativa do ano em que eu deveria deixar o ninho: 2954, mas como o nome dela não era “Cegueta” por acaso, a danada me pegou com seu bicão e me despachou antes da hora.

Menos mal que essa ave não tenha me entregado na época da Idade das Trevas (das torturas medievais), ou da primeira ou segunda guerras mundiais, mas viver nos séculos XX e XXI tem sido um grande desafio para mim. Tenho asco quando, sem querer, eu sou informada sobre os crimes de roubo do erário público, de pedofilia, de homofobia, de violência doméstica, de violência infantil, de violência familiar, de tortura.... Sofro, mas aguento razoavelmente bem, porque essas coisas normalmente estão longe de mim. Duro mesmo é ter de conviver com pessoas que são capazes de tudo para que obtenham uma (ou todas juntas) dessas três coisas: SEXO, DINHEIRO e/ou PODER.

Para ilustrar o que afirmo, cito apenas quatro tipos de “pessoas” e os atos de que são capazes:

1. As que se apropriam de dinheiro público por meio de maracutaias, de licitações fraudulentas, de contratações de shows, deixando de investir em educação e saúde, cravando e perpetuando o povo mais humilde na base da pirâmide social. O que mais indigna as pessoas que enxergam isso (não é muita gente, creio) é que os políticos ou autoridades que assim agem, o fazem em busca das segunda e terceira coisas acima citadas;

2. O que pensar dos que economizam em salários e maltratam seus subalternos, apenas para juntar, juntar, juntar..., como se ao partir desse planeta pudessem levar mais do que a alma?;

3. Há, também, aqueles que, falsa e descaradamente, bajulam os que estão no poder e não têm escrúpulos para direcionar a boca para outro escroto, caso o “rei” seja deposto; tudo, claro, também, em busca da segunda e terceira coisas; e

4. As pessoas que têm os pés nas cavernas e por isso, como animais irracionais, não conseguem controlar seus instintos sexuais. Então para satisfazê-los, não se importam nem em trair e nem em, covardemente, subjulgar um inocente.

Assim como Martin Luther King, o que me indigna é o “silêncio dos bons”, é o “insosso”, o “morno”, aquele que nada fala sob o argumento covarde de que “a vida sempre foi assim”. Nessas horas, eu me recordo de um poema de Neimar de Barros, que marcou minha adolescência. Embora ele tenha como foco os preconceitos, penso que vale pelas mensagens subliminares, e pelo fato de muita gente nova não o conhecer:

"DEUS NEGRO

Eu, detestando pretos, eu, sem coração! Eu, perdido num coreto, Gritando: "Separação"!

Eu, você, nós...nós todos, cheios de preconceitos, fugindo como se eles carregassem lodo, lodo na cor...E, com petulância, arrogância, afastando a pele irmã. Mas, estou pensando agora, e quando chegar minha hora?

Meu Deus, se eu morresse amanhã, de manhã?

Numa viagem esquisita, entre nuvens feias e bonitas, se eu chegasse lá e um porteiro manco, como os aleijados que eu gozei, viesse abrir a porta,e eu reparasse em sua vista torta, igual àquela que eu critiquei?

Se a sua mão tateasse pelo trinco, como as mãos do cego que não ajudei?

Se a porta rangesse, chorando os choros que provoquei?

Se uma criança me tomasse pela mão, criança como aquela que não embalei,e me levasse por um corredor florido, colorido, como as flores que eu jamais dei?

Se eu sentisse o chão frio, como o dos presídios que não visitei?

Se eu visse as paredes caindo, como as das creches e asilos que não ajudei?

E se a criança tirasse corpos do caminho, corpos que eu não levantei, dando desculpas de que eram bêbados, mas eram epiléticos, que era vagabundagem, mas era fome?

Meu Deus! Agora me assusta pronunciar seu nome.

E se mais para a frente a criança cobrisse o corpo nu, da prostituta que eu usei, ou do moribundo que não olhei, ou da velha que não respeitei,ou da mãe que não amei?

Corpo de alguém exposto, jogado por minha causa, porque não estendi a mão, porque no amor fiz pausa e dei, sei lá, só dei desgosto?

E, no fim do corredor, o início da decepção. Que raiva, que desespero, se visse o mecânico, o operário, aquele vizinho, o maldito funcionário, e até, até o padeiro, todos sorrindo não sei de quê?

Ah! Sei sim, riem da minha decepção. Deus não está vestido de ouro. Mas como?Está num simples trono. Simples como não fui, humilde como não sou.Deus decepção. Deus na cor que eu não queria, Deus cara a cara, face a face, sem aquela imponente classe. Deus simples! Deus negro! Deus negro?

E Eu...Racista, egoísta. E agora? Na terra só persegui os pretos, não aluguei casa, não apertei a mão.

Meu Deus você é negro, que desilusão! Será que vai me dar uma morada? Será que vai apertar minha mão?

Que nada. Meu Deus você é negro, que decepção!

Não dei emprego, virei o rosto. E agora? Será que vai me dar um canto, vai me cobrir com seu manto? Ou vai me virar o rosto no embalo da bofetada que dei?

Deus, eu não podia adivinhar. Por que você se fez assim?

Por que se fez preto, preto como o engraxate, aquele que expulsei da frente de casa?

Deus, pregaram você na cruz e você me pregou uma peça.

Eu me esforcei à beça em tantas coisas, e cheguei até a pensar em amor,Mas nunca, nunca pensei em adivinhar sua cor."

Enquanto eu não posso voltar para o ninho de onde vim, fico aqui só observando esse mundo e torcendo para que, a exemplo desse poema, na hora de prestar contas de seus atos ao Pai, todos os ladrões do povo, os exploradores de pobres, os falsos e os fornicadores encontrem no rosto de Deus as faces de suas vítimas, antes de serem arremessados aos quintos dos infernos, com um socão na cara e um brado gutural: IDIOTAS!!

NORMA ASTRÉA
Enviado por NORMA ASTRÉA em 15/06/2015
Reeditado em 23/05/2019
Código do texto: T5277931
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