Em bom "pitanguês"

A bola corria solta na R. Bernardo Mascarenhas, Cidade Jardim, BH. Era num tempo muito antigo, década de 60. O córrego, hoje debaixo da Av. Prudente de Morais, era atravessado pedra ante pedra, caminho mais rápido pra chegar do outro lado, na Faculdade de Filosofia. O outro lado, uns chamavam de Lourdes, outros de Santo Antônio. O lotação Lourdes era cor vermelha e amarela, os ônibus eram quase do tipo "jardineiras", tinham nariz grande e bancos surrados, que nem os que faziam transporte de Pitangui para outros lados. Faltava a escadinha na traseira, pra subir ao bagageiro, no alto do ônibus.

Pela Conde de Linhares subiam e desciam os ônibus elétricos, ai que saudade. Um menino, um dia, perguntou ao pai porque aqueles ônibus usavam suspensórios, visões infantis. A parada no bairro era na Praça Bariri, no Coração de Jesus, e no centro era na Av. Amazonas, na Praça Sete, nariz apontando a Praça da Estação. De um lado, o Banco Hipotecário, do outro o Edifício Dantés.

Bom, o que interessa era que dava pra jogar bola no meio da rua naquele tempo. Vai que aparecem aí uns pitanguienses, roceiros, com um" erre" de anzol, que se enrolava na ponta da língua e parece que queria entrar pra garganta adentro. Não conhecíamos televisão nem elevador, a viagem de cinco horas se fazia por estrada de terra, de paralelepípedo e só depois de Juatuba é que aparecia o asfalto. A turma de Belo Horizonte tirava sarro de tudo, capitaneada pelos primos, um deles o Marquinho, que tinha nascido na capital.

Um dos caipiras era eu, outro era o Tõe, meu irmão. Eu, mais velho, já percebia que meus primos e os amigos deles faziam o "erre" na garganta. E tentava imitar. Nada de "poRRRta, era "poHHHta". Não era meu "iRRRRmão, era meu iHHHmão. Bem belorizontino, era chique. Tõe, na inocência dos sete ou oito anos, envolvido com a pelada no meio da rua, não se ligava nisso, pedia a bola, avisava que ia lançar e emitia comentários a todo instante. E um deles ficou pra sempre na memória dos primos belorizontinos, ao se referir a uma bola bem passada: "bom passe!". Com esse apelido passou a ser citado por todos e lhe causava muita raiva, quando começou a entender que era uma forma de caçoarem dele. Lido e ouvido agora não tem muita graça, mas era a entonação, certas expressões e a pronúncia do 'erre" de anzol que chamavam a atenção. Era "bullying", mas quem proibia?

Quem estuda os dialetos mineiros sabe que há muita diferença de pronúncias e vocabulário no Estado. Minas são muitas, já diz o refrão. Mas o que chama mesmo a atenção e define basicamente quem é de que lugar do Estado é o terrível" erre". Os triangulinos, os oestinos como nós, pitanguienses, a gente do sul, todo mundo "puxa" o "erre". Em Belo Horizonte, converge gente de todos os lados, mas o" erre "na garganta foi o que predominou. Já o nosso" erre puxado" passou a ser sinônimo de caipira, lembrando, quem sabe, o Jeca Tatu e o Mazaropi. Na capital não dava pra vacilar, ou você era logo identificado, rotulado, apontado, crucificado. "Erre" de garganta, o único tolerado. Limpeza linguística, solução final.

Hoje, os tempos mudaram. No contexto do politicamente correto, tudo pode. Tudo é aceito. Algumas coisas até em exagero. Por exemplo, todo mundo tem direitos. Vocês já viram passeatas e manifestações pelos direitos? Claro que viram. Mas, e pelos deveres?" "Quero ganhar igual a fulano, ganho muito, quero redução de salário". "Quero ir pra frente de luta, nada de ficar na retaguarda durante uma batalha". Passeatas pelos deveres? Aposto que nunca viram. Mas algumas coisas mudaram pra melhor. Chega de bullying, dizem. Vejam o Danilo Gentili , comediante, e o Neto, ex-jogador de futebol. São exemplo de dois na televisão caprichando no "puxar" dos seus" erres", sem qualquer constrangimento. Aí, me pergunto: por que temos que mudar nosso "erre"? Ou será que é uma tendência natural, influenciada pela televisão, rádio e os contatos cada vez mais frequentes, com a gente da capital? Tudo bem se é uma tendência natural, evolução (ou involução) linguística, que cria e extermina línguas e dialetos, aleatória e impiedosamente. O que não pode acontecer é uma transformação por sentimento de inferioridade ou algo de cunho negativo.

Uma sugestão ao blogue seria provocar uma discussão sobre o tema. Algum linguista que fale sobre o sotaque de Pitangui, as expressões de Pitangui, o que vai se perdendo por influências externas e também por sentimento de inferioridade. Acho um tema interessantíssimo, tese talvez até para um mestrado em Letras, quem se habilita?. Estaria bem dentro do espírito que norteia o blogue e contribuiria também para manter o trabalho de recuperação da nossa autoestima, a principal contribuição, a meu ver, deste superblogue.

(Esta crônica foi publicada inicialmente no blog

" daquidepitangui.blogspot.com.br ")

William Santiago
Enviado por William Santiago em 18/06/2015
Reeditado em 04/07/2022
Código do texto: T5281402
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