O Poeta Ri

Muita dor e sofrimento, muita coisa criada por nós. A vida segue impassível. Não nos parece um exemplo de fraternidade. Os corpos pela estrada. Pequenas muitas manchas em Acari (“O meu Cariri, quando a chuva não vem...”). Muitos morrem para adubar a terra que alimenta muitos que vão morrer também. Não importa o quão importante tenham sido. E essa importância é dada por nós. Na horizontal, ela perde o sentido. A vida segue impassível. No frigir dos ovos, a mesma para reis e plebeus. O cemitério pode ser o mais bonito, o caixão o mais luxuoso, mas o corpo que apodrece terá o mesmo destino. Só pra nós, que nos julgamos donos do mundo, faz sentido classificar os cidadãos em 1ª, 2ª, 3ª ou mais categorias. Para a vida, eles são os mesmos. Vão cumprir direitinho o seu papel.

A garota cresce, fica adulta e muitas vezes, mesmo descasada, só quer ir pra cama se for por amor. (Um bom número de vezes é por uma questão de segurança, que se traduz em dinheiro.) Mas bem pequenina a vontade de fazer... já era sua conhecida. Somos o que somos ou o que aprendemos? A vontade fica subordinada a algo que foi colocado na minha cabeça. A liberdade é extremamente relativa.

O emaranhado de condicionamentos. Até pensar pode ser complicado. Não posso pensar de qualquer maneira. Não posso ter certos pensamentos. Decorrentes de desejos considerados indevidos, impuros, impróprios, proibitivos, inadequados. Será que vão aceitar isso? Será que isso não vai chocar? Será que só estou fazendo isso pra chocar? Será que estou falando o que penso? Será que é possível (perigoso/prático/recomendável/proveitoso) fazê-lo? Normalmente não é.

E no meio desse emaranhado de condicionamentos, surge o amor. Que é o tipo da coisa que todo mundo sabe (que existe), mas que ninguém jamais conseguiu definir com precisão. Associar a carinho, pena, sexo a gente já viu que não dá. Associar a ódio, raiva talvez seja mais positivo. Mas quem ama não mata. Aí surge, por exemplo, o egoísmo. E muito mais coisas pra Freud explicar.

Quanta poesia se pode fazer em cima de tudo isso. Quanto já se fez e certamente se fará. O poeta trabalha com praticamente 90% do que se colocou na cabeça das pessoas (e obviamente na dele). A vida não tem muito a ver com isso. Ela segue impassível. Não quer saber de Virgolino, Conselheiro, Guevara ou Mussolini. Não quer saber se os armênios foram quase dizimados pelos cristãos. Ou se alguma nação indígena o foi. Queiramos ou não, o ciclo vital irá se cumprir.

Mas existem coisas que não precisaram colocar na nossa cabeça. A fome, a dor física, a solidariedade, a vontade de sexo, a 5ª Sinfonia de Beethoven, etc. O poeta também trabalha com isso. E aí ele já não ri.

Rio, 12/01/1994