Domingo é fundamental

Muitos da minha geração demonstravam seu descontentamento com os métodos do sistema escolar cabulando quantas aulas pudessem, e eu estive entre eles o suficiente para não repetir de ano, pois creio que conhecimento se pode ir buscar de qualquer maneira quando se tem o interesse. No colegial, eu e meus amigos costumávamos visitar museus, parques e atrações culturais, esportivas ou sociais quando não entrávamos na escola.

Num dia de 1987 não foi diferente, porém não por nossa escolha. Chegamos em frente ao colégio no horário habitual e encontramos uma concentração de pessoas na rua, uma delas com um megafone anunciava greve estudantil por conta de um aumento abusivo nos valores das mensalidades, incitando os alunos a partir para outra unidade do mesmo conglomerado de ensino que ficava na Avenida Paulista. Os alunos então, não perderam esta chance de ter uma experiência bem menos maçante do que ficar com as nádegas dormentes nos assentos das salas, e acompanharam os agitadores formando uma grande massa que se deslocou à pé até aquele nobre endereço, impedindo todo o tráfego de veículos pelo trajeto.

Confesso que naquela manhã, mesmo seguindo uma manifestação dirigida por outrem, com um propósito definido e que me incluía, mas que não era a razão principal de eu estar ali, senti uma leve brisa de liberdade, caminhando bem no meio da avenida que mais representa o poder que nos apequena. Juntos, formávamos um gigante que engolia os automóveis, os tornava inúteis, e embora a maioria dos alunos seguisse em festa, havia um pouco de tensão no ar. Em certo momento da tarde houve depredação e confrontos com a PM, e muitos saíram machucados.

Nos últimos anos, a Avenida Paulista se tornou lugar-comum para os descontentes, foi palco de muitos conflitos entre as forças repressoras do Estado e seus cidadãos, em seu asfalto explodiram bombas e correu muito sangue. Mortes ocorreram no interminável embate entre pedestres, ciclistas e condutores de veículos motorizados, apressados em satisfazer as exigências de um deus que mantém ali muitos templos, o dinheiro que tantos idolatram.

No domingo passado, entretanto, as circunstâncias não me permitiram participar de uma das melhores manifestações que já ocorreram até hoje naquela via pública, de alegria coletiva, pela simples abertura deste espaço público para a diversão aos domingos. Ciclistas, cadeirantes, skatistas, patinadores, pedestres, artistas, gente usando fantasias, todos compartilhando o dia, por algumas horas livres dos automóveis, da pressa, famílias brincando, gente convivendo, pessoas aprendendo a ver o tempo como um bom amigo.

Apenas uma pequena vitória do ser sobre o ter, pois na segunda-feira os segundos voltarão a ser ameaçadores, os sorrisos ficarão guardados nas gavetas ou nos porta-retratos dos cubículos nos escritórios, a semana se arrastará até que o próximo dia livre possa trazer a versão mais nobre de cada indivíduo. Que me perdoem os dias úteis, mas domingo é fundamental.

Ricardo Selva
Enviado por Ricardo Selva em 01/07/2015
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