Dois Córregos Revisitada

Outra vez te revejo, Dois Córregos da minha infância. Outra vez te revejo, Fundo e Lajeado correndo não de encontro ao do Peixe, mas ao fundo do meu coração. Outra vez te revejo, Matão pairando como um templo sobre o menino de outrora que mora em mim ainda hoje. Ainda está gravada a minha imagem, nua, porejando orvalho verde, na terra vermelha do barranco alto e largo na estrada de casa.

A figueira está lá, imponente e majestosa, dominando a paisagem; as folhas caem amarelas como ouro frágil, ou verdes ainda, mas é sempre outono em mim. A casa está lá, com o jardim na frente, as rosas e as dálias, e a varanda preguiçosa na sombra, com as lagartixas curiosas. A vida ventava por todas as janelas, por onde entravam os pássaros e as frutas do pomar, as jabuticabeiras, mangueiras e laranjeiras. Nunca se conjugam todos os verbos da infância – eram tantas as jabuticabeiras, tantos os olhos brilhantes de tão negros das jabuticabas.

Dois Córregos é uma fotografia na parede da alma. Dois Córregos é como a presença invisível de Deus, presente num perfume que estonteia, nas mãos sujas, nos pés sujos, por mais que os limpe sempre sujos do verde e vermelho da infância. O ribeirão corria lá ao fundo, vinha do capão de mato fechado, aberto ao sonho, vinha e continuava para além com suas águas cristalinas de uma suavidade que lava a alma de beleza para sempre. Está lá o tronco onde eu me equilibrei sobre o abismo e vi o mundo, pequeno como eu e enorme como o desconhecido, e sonhei o universo que assombra a minha pequenez.

Dois Córregos dói, mas passa. Tudo passa nesta vida. Passaram o Fundo e o Lajeado, estão passando, mas digo sempre que já passaram para nunca mais, nunca mais verei quem fui, então, com eles. Pousada Alegre dos Dous Córregos, quanta tristeza! A pousada passou, os córregos passam e passam, continuam passando e me levando, já me levaram. Quem sou é um eco, uma sombra, uma fumaça se elevando e morrendo no mato, entre as queixadas e os caititus, um cincerro ouvido na curva da estrada, no pescoço de uma égua madrinha já morta há séculos. Passaram as capivaras e as onças nas águas plácidas, eu montado no lombo, lutando, sendo estraçalhado, e cavalgando para sempre, no sonho, no mito.

Dois Córregos sou eu e meus fantasmas envergonhados. Os paralelepípedos sérios, conversando nas esquinas, à sombra dos lampiões da fábula, com óleo inextinguível. Uma vez vi um lobisomem sobre um muro, tinha dentes de bicho e vergonha de homem – fugimos devagar, um olhando para o outro. Tantas sombras na rua, todos os parentes mortos dialogando no escuro e se apalpando para ter certeza de que estão mesmo mortos. Um pigarro, outro pigarro, e de pigarro em pigarro a alma de Dois Córregos se acende na ponta de todos os pitos de barro.

O saci-pererê não andou por aqui, nem a mula-sem-cabeça, nem o unhudo da Pedra Branca e suas jabuticabas bravas. Andou por aqui o meu avô, andou por aqui o meu bisavô João Ventura que abriu o sertão de um mato enorme, que por isso chamou de Matão, que virou uma fazenda, depois multiplicada para os descendentes, amém. Dois Córregos é o meu pai andando no cemitério e contando os mortos, orgulhoso daqueles mortos todos, que vieram antes povoar esta terra e agora dormem com ele, refestelados nas brumas do eterno.

Outra vez te revejo, Dois Córregos, e mais uma vez caminhamos lado a lado como dois estranhos. Não me reconheces e eu não te reconheço. Mas o mesmo sangue corre nas nossas veias, a mesma estranheza – a mesma fraternidade! – aos olhos de fora, pasmos, tão outros. A mesma alma nos habita, como uma casa muito antiga com os seus fantasmas esquecidos passeando pelos corredores.

O menino que fui, homem de barro, cacos pelos caminhos. Tudo foi dado ao menino e tudo tirado ao homem, mas permanece, pulsando dentro, como boa paga. Estendo a mão, aberta, vazia – somente eu sinto o peso do homem que ela carrega, um tição queimando na noite e a terra vermelha e a árvore verde cantando com todos os pássaros. Eu sozinho, menino e homem, como uma bilha quebrada e com toda a inteireza de ainda ser bilha: matéria humana e quase divina. Como os dois córregos que não correm para o mar, mas para outro córrego, eu corro para o meu destino já traçado, pequeno e quase divino.