Meu celular é rádio e relógio

Acordei no meio da madrugada com uma suspeita: meu celular estava tocando! Mas foi meus próprios dedos que acenderam o visor e ali estava marcando a hora digitalmente grande, e o meu próprio rosto fotogrado de fundo de tela rindo para mim mesmo. Ou de mim mesmo. Virei para o lado da parede e tentei voltar ao sono, mas ouvia roncos vindos de outros lugares. Mas eu era só naquela barraco de tijolo cru. A televisão estava desligada de tanto tédio que ela me proporcionara a tarde. As moscas se enjoaram, naquela hora, de obrumbar aquele prato sujo de dias, largado sobre o meio daquela cômoda cujas gavetas estavam todas escancaradas e com roupas a esboroar. Amanhã eu pegaria minha carteira largada, aberta, atirada ao chão; devo tê-la chutado quando pensei ter ouvido alguém na porta. Parece que não vem ninguém aqui a semanas. É um buraco sujo perdido na zona este lugar. Sempre passa moto voando, animais cavalgando-as; as vezes espoca tiros ao longe, contudo pode ser bombinhas. As crianças da rua não tem muito o que fazer. Elas ainda não tem celular nem i-phones, somente seus pais, e estes vivem ocupados com os seus e eles se distraem tentando assustá-los.

Quando amanhece sinto uma febril vontade de continuar na cama de colchão magro, encolhido, recolhido, ouvindo a algazarra que vem da rua. É um tumulto ascendente, uma monotonia decadente. Entre as vigas de madeira que sustentam o telhado vejo teias de aranhas se enroscando, mas nãos as vejo. Devem ter ido trabalhar. Só os insetos trabalham. A carreira de formigas sobe obstinada pela cômoda cor de casca velha até alcançar os restos de comida velhos no prato sujo de anteontem, e uma mesma carreira desce na mesma obstinação, e embora não consiga avistar daqui onde estou, mas sei que carregam para o buraco em algum lugar. Em algum lugar fica um buraco em que elas se enfiam, se aquecem, se alimentam... Estamos todos num buraco. Daqui deitado não posso ver, mas ouço o burburinho crescente de gente que sobe e desce esta zona que chamam de rua.

Olho o celular com esperança. São horas de levantar. Há muito! Mas, péra, esta música que tenho nele, e depois dela se deixo tocando, vai tocando, tocando, mesmo pega as estações que antes ouvia num rádio, num aparelho de som. O locutor me dá aquele bom dia cheio de júbilo, caprichado no "o" bem no meu celular. Ninguém me liga. Acho que na semana passada recebi um torpedo. No meio da música ridícula que adoro, sabendo que estou sintonizado numa estação de FM, fez aquele barulhinho feito uma moeda caindo no cofre vazio, e hoje as minhas moedas andam pelo chão, pelos cantos, enferrujadas moedas de cinco centavos que a mocinha triste do caixa do supermercado vive me pedindo, mas nunca tenho e que estão todas no chão, pelos cantos, caindo nos ralos, roçando as sarjetas. O torpedo é apenas da operadora me oferecendo bônus caso eu recarregue. "Não fique sem falar com seus amigos", diz o recado. Me pergunto que amigos. De alguns colegas que tive, que ainda pude chamar, em horas tenebrosas de companheiros, que desses eu sei. Nem de mim mesmo sei. Continuo aqui deitado, um braço pendendo mole, agora, fora da cama, a cara enterrada no travesseiro de fronha nauseabnunda. Se me perguntarem como vim parar aqui, nem sei, as circunstâncias que me trouxeram até este beco sujo e dentro deste barraco imundo e abafado se arrolaram de tal maneira como se meu destino degringolassem como a própria desgraça da existência.

Um dia. Teve um dia, bem no auge de qualquer dia que ainda nem eu tinha celular, embora já existissem celulares, mas não celulares que fossem rádio, ainda eram apenas relógios, e estava espetado sentado num canto de uma cama num quarto cujas paredes eram um pouco mais pintadas e os moveis que me norteavam eram mais aprazíveis, foi assim que ouvi numa estação de rádio em FM, dessas estações babacas em que o locutor fica falando um monte de baboseira e uma pessoa, que supostamente esta do outro lado da linha, fica achando graça secamente, então de repente tudo se interrompeu, e o cara pareceu não perder a voz parva, porem queria se fazer mais sério pois o momento era grave. Sequestro de um ônibus ao vivo, tinham matado uma garota ao vivo na TV. Foi quando corria para a sala e liguei a TV. Sim, era tudo ao vivo e era dia dos namorados, mas eu nem tinha namorada nem namorado. Eu não tinha nada, nem mesmo um celular pra rádio. Algum amigo meu, cujo rosto nem me lembro mais, apareceu à minha casa, contudo vinha me chamar para ir à igreja. Eu tinha esquecido de Jesus? E eu queria lhe falar do sequestro do ônibus, não tinha acabado, ele não estava vendo, mesmo o locutor babaca continuava lá do meu quarto no aparelho estéreo. E hoje que era um dia pra se amar, um dia pra se ser feliz, era o que dizia o locutor babaca. E meu amigo sem rosto ficou perguntando e Jesus, e Jesus, hem, hem. E atiraram na moça quando o sequestrador saiu do ônibus levando-a como escudo, eu apontei a tela da TV, mas meu amigo continuava falando a mesma coisa, eu me esquecia de Jesus, me esquecia, Jesus é a luz do mundo, o pão da vida...

Nada na minha vida importa agora. Não quero saber do rosto indefinivel daquele amigo que não tinha papo comigo, embora fosse um amigo, nem muito menos daquele sequestro do ônibus que lá se vai tantos anos. Sigo na palidez mofada dos meus dias. Um dia naquele antro imundo que chamo de trabalho, fazendo cara de paisagem e outro dia preso, mofando nestas paredes ensebadas, comendo restos, sobras que posso comprar, que o mercado vende caro. Os alaridos das crianças saindo da escola são como de canários soltos das gaiolas. Eu imagino, pois nunca vi de perto um canário que não fosse preso numa gaiola. Me encolho na quina da parede do box do chuveiro, experimento a prisão da minha prisão, o aviltamento do meu aviltamento. Quando bebo, tomo porres e faço tantos amigos que seus rostos nem me são lembrados no dia posterior, depois que os vomito num jato podre, escoam pelo meu vômito a lembrança dos amigos que fiz junto com o vinho barato que eles me ofereceram e meu fígado expulsou em revolta.

O meu celular informa as horas. Me desperta pra ir ao trabalho, me nina com a estação de rádio, a voz de um locutor babaca sempre falando no meio da música, tudo isso me é mais útil que se eu precisasse fumar. Um dia desses um cara se aproximou de mim, enquanto eu bebia uma cerveja barata e choca num botequim tão imundo que baratas passeavam livres pelos meus pés, queria fogo, acender seu cigarro. Não fumo, informei a ele, e o sujeito de face rota e andar mulambento procurou outra pessoa, no mesmo tom humilde. É por isso que não arranjo mais amigos. Não tenho vícios. Precisa-se de atitude até mesmo pra tê-los, e me falta para um simples vício até. Não tenho nenhum. Enrolo com este copo de bebida choca que chamam de cerveja, mas por que enrolo o tempo da solidão, de ficar entre aquelas paredes imundas de tijolos crus, ouvindo meu celular que é rádio e relógio, minha face fotografada no fundo da tela a rir de mim mesmo, seco e sem ironia. Rindo de mim mesmo. Se tomo algum porre é porque tento fugir da rotina, mas vomito tudo com violência e volto arrependido para o meu canto, a cama de colchão mole, o braço pendendo mole, a mão se arrastando no chão imundo.

São duas da tarde, ou é duas da tarde, tanto faz. Catorze horas. O que vem depois de um café ralo mal passado? A rua se agita em poeira lá fora. Quando chove apodrece em lama, em berros de sapos e rãs.

No trabalho me encosto naquele balcão de madeira ensebada e enegrecida e finjo que o que faço é muito importante pra quem vem me procurar, mas uma mão minha não sai do bolso conferindo o lugar do celular. A pessoa desiste, não tenho ânimo para convencê-la. Como qualquer pessoa ela não precisa de mais nada se já tem um celular que é rádio e relógio, que pode ser game, que pode ser TV, que encontra amigos imaginários. Que tanta coisa faz um celular, eu sei, mas pra mim basta que seja rádio e relógio. Tem uns ícones que nunca usei, e recebo torpedos da operadora implorando já que eu recarregue, afinal desistiram de certa ameaça de perder a linha. Que pouco me importaria se ele ainda informaria as horas e pegasse as estações FM e continuasse tocando as músicas que sei lá por qual motivo foram parar em arquivos em mp3.

Teve um tempo que eu comprava CD, contudo era de bandas e artistas tão artificiais, as músicas tão babacas, as mesmas que tocavam massivamente nas rádios babacas que ainda ouço sem parar, que tudo foi para o lixo sem que me fizesse qualquer falta, nem sei que sorte os levaram para o lixo, pois as rádios continuam tocando as mesmas musicas, só que os artistas são outros tal como se tivessem brotado da semente que os outros deixaram.

Tudo deixa semente na terra. E a terra esta repleta de inutilidade assim como eu. O mundo se torna pleno de tédio e ódio. As conexões se procuram mas nunca se encontram, desalinham-se soberbas, vazias, sacudindo-se como carroças trotando ocas pela estrada tortuosa. As vozes deixam se clamar à toa, perdidas com ecos que refletem o mesmo vazio. Os celulares não tocam mais. Estão todos com os olhos vidrados em suas telas, dentro dos coletivos, andando pelas ruas, atravessando os sinais, em seus empregos monotonos, por sob as mesas dos bancos escolares, mesmo nas emergências, atendendo urgências de vidas em perigos, não se desprendem os olhos deles. Contudo eles não alertam chamadas. Não tocam nunca. Ninguém recebe chamadas. Os celulares não são mais telefones. Pra alguns são mesmo os amantes. Reparo a moça lá no canto de uma janela do coletivo em movimento, e ela sorri faceira para a tela do seu celular, passando as mãos pelos cabelos que o vento da janela leva em desalinho. Ela se ajeita para seu amante, ela sorri para ele. Seu celular, seu amante, e ela não ver a hora de estar em seu quarto, em sua cama, sozinha com ele.

Mas o meu celular é apenas rádio e relógio. Sou uma pessoa antiquada, um velho de trinta e poucos anos, com os bolsos furados. Como restos que pago caro no supermercado que a moça triste e entediada me pede centavos que nunca tenho. Moro num barraco caindo aos pedaços e alimento as formigas e as baratas com os restos do resto que compro e como e pago caro. A rua apodrece e nubla de poeira ao meio da tarde seca e quente. E pouco se me dá. Vivo a dar de ombros, como fiz com tudo que nunca me importou. Nem me lembro mais de onde vim, por que nem me chocou aquela tragédia na TV. As novelas reprisam a mesma história e às vezes com os mesmos atores fazendo os mesmos personagens ano após ano, arrolando nossas vidas, nossas existências num papel inútil e vão. Seguimos sem sentido, achando ter sentido. Buscamos nostalgias, saudades de tempo que ainda continuamos vivendo, só mesmo os celulares nos arranca desses arroubos e voltamos ocos para o mesmo lugar. Nem desconfiamos da morte, arriscando pouco. Isolados e temerosos nem sabendo bem de quê, as mãos fortemente segurando o aparelho que nunca toca, nem mesmo liga pra ninguém, apenas olha a tela, que como a minha, tem seu próprio rosto fotografado no fundo rindo de você mesmo.