Fome  em São Paulo
 
 
 
                  Foi de repente.  Fim da última aula da turma do segundo ano Clássico, Colégio Mello e Souza, em Copacabana. 50 alunos: 38 moças e 12 rapazes. Sala apelidada de Paraíso e olhada com muito interesse pelos alunos do curso Científico, onde só tinha marmanjos. Como estava dizendo: no fim da última aula, por volta de 12.00h., a Therezinha, filha da Mara Rúbia, artista de teatro revista, muito famosa na época, convida a turma para comparecer na bienal de São Paulo. Era a quarta ou quinta bienal, não me lembro mais. Acontecia no famoso Parque do Ibirapuera.
                  Claro, cada aluno indo às suas expensas. A maioria já com carro (nessa época o Departamento de Trânsito aceitava que o menor entre 16 e 18 anos dirigisse automóvel, desde que com autorização dos pais). A turma era de “riquinhos”, menos dois alunos: eu e o Miguel Vovô.
                  Em razão dessa fatalidade (que, aliás, nunca me incomodou), Miguel e eu fomos de carro com o Mário Fulgêncio Palhares e o Carlos Eduardo Jardim. O Mário, dirigindo um enorme carro, um Chrysler Imperial, com a devida autorização do pai. No bolso do Miguel Vovô o endereço de um Hotel modesto, indicado pelo seu avô português. Miguel, com seu fabuloso bigode mexicano (ficava com aparência de um homem de 40 anos, apesar dos seus 17) ia dizendo maravilhas do Hotel, bom e barato. Com isso poderíamos aproveitar bons restaurantes. Sabíamos que a comida de São Paulo era farta, ao contrário da carioca, sempre pouca. Já notávamos os jogadores de futebol de São Paulo, todos gordos, enquanto os cariocas, sempre magrinhos.
                  Sem sentir, chegamos a São Paulo, por volta das seis horas do entardecer, entrando numa tremenda contramão na Avenida São João, deixando os guardas malucos para travar o intenso trânsito da São João.  Nessa época, São Paulo era uma cidade de muita ordem. Ainda ouvi um guarda dizer: "Deixa pra lá, é coisa de carioca". Superado esse vexame, encontramos o Hotel. Neste exato momento, saía do Hotel um marinheiro,  agarrado a uma mulher, identificada pelo colega Jardim como sendo de vida fácil. O marinheiro, bêbado, tropeçava nas próprias pernas. E aí veio a reação fulminante do Jardim: - “ Nesse Hotel eu não fico, isso parece mais uma casa de tolerância...”  (na verdade, ele falou em "puteiro") E ainda veio a ordem: - “ Mário, pega a Avenida Paulista e vamos para o Hotel tal. O Hotel tal era um cinco estrelas da época. Conclusão: um apartamento para o Mário e o Jardim e outro para mim e o Vovô. Eu, com duzentos cruzeiros, e o Miguel com trezentos. Os apartametos eram enormes, pareciam uma casa completa, com salão, sala de visitas, biblioteca, varanda. A despesa de quatro dias para nós dois foi de quatrocentos  e cinquenta cruzeiros. Pelas contas,  o Miguel ficou apenas  com cinquenta cruzeiros. Esse seria o dinheiro para a comida e algum extra.
                  Nossos ricos colegas, sem saberem da nossa penúria (não passava na cabeça deles que não tínhamos dinheiro), saíam de manhã e só voltavam à noite. Cada dia, jantavam em um restaurante estrangeiro. Ora, um restaurante grego, ora um alemão, ora um austríaco, etc. etc.
                  Eu e o Miguel Vovô fingíamos que íamos para o Ibirapuera, mas na verdade, ficávamos o dia inteiro andando pra lá e pra cá na Avenida Paulista. Os leitores vão me perguntar sobre a comida. Irei satisfazer a curiosidade: na hora do almoço, comíamos um ovo cozido com  um copo de leite, ao preço de um cruzeiro, na “Salada Paulista”.
                  Término da aventura, chego em casa e meu pai quer saber de tudo da bienal. Perguntava muito e eu nada respondia. Até que papai resolve encerrar a conversa: - Mas, afinal, o que achou das obras de arte?  - “Papai, era uma arte tão abstrata, que acabei não gravando nada na cabeça. Essas obras deveriam ser mais suculentas, mais concretas.” – Suculentas? Não entendi!  - É apenas uma imagem, papai. ( a fome era tanta que cheguei a me trair). Quis dizer que não havia substância, trabalhos que não criavam uma sustentação ao visitante.”
                  Papai, com sua proverbial sabedoria, para não me deixar mal, sentindo algo no ar, resolveu encerrar o papo. E nunca mais se falou em bienal na nossa casa.
Gdantas
Enviado por Gdantas em 13/07/2015
Reeditado em 13/07/2015
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