Aquela casa que não existe ficou pra mim

Fui presenteado em minha humilde existência com algumas oportunidades tão raras e preciosas que muitas vezes me surpreendo. Um destes presentes foi uma casa na qual morei durante pouco mais de um ano, e hoje existe apenas nas memórias de poucas pessoas.

Minha história naquela casa começou quando o meu irmão comprou um filhote de cachorro. Os donos do canil acabaram ficando seus amigos, e eu acabei lhes visitando um dia, eu fabricava telas de pintura e fui entregar algumas.

Na hora eu adorei a casa, e quando elogiei os proprietários ainda fiquei sabendo que aquela casa já tinha sido de Anita Malfati. Um outro acontecimento que me contenta foi conhecer o Paulo Bonfim anos depois, e numa conversa ele me confirmou que a famosa pintora chamava aquele recanto de seu rancho. Ficava no centro de Diadema, próximo à Praça da Moça.

Depois de algum tempo, meu irmão recebeu a proposta dos seus sonhos, e eu acabei entrando de gaiato nesta história. Os donos da casa, conhecendo a afeição do meu irmão pelos caninos, lhe ofereceram todo o plantel do canil se meu irmão alugasse a casa, pois eles precisavam se mudar de estado, e alguém precisaria cuidar dos cães.

Quando eu soube disto, me ofereci para dividir as tarefas do canil e acabei me mudando para lá junto com meu irmão, para dividir a casa com dezesseis cães da raça Airedale Terrier.

No período que estive naquela casa tive dias memoráveis, os quais ainda me fazem sorrir, e só a descrição daquela casa daria um capítulo à parte, não vou me estender nos detalhes.

Anos depois, eu já havia morado em outros dois lugares, por coincidência acabei sabendo no trabalho que havia uma ação tramitando sobre aquela casa. A prefeitura de Diadema havia proposto o tombamento daquele imóvel pelo seu valor cultural, e o cidadão que havia recentemente adquirido aquela propriedade contestava na justiça esta restrição ao seu patrimônio.

Fiquei contente por imaginar que a casa seria preservada, talvez pudesse ter virado uma casa de cultura que eu certamente iria visitar. Mas este ingênuo contentamento durou pouco, mais alguns anos depois, também no trabalho, conheci um morador de Diadema que já era interessado pela história daquela casa há tempos, ele sabia a rua mas ignorava o número, já tinha ido até lá procurar mas não soube identificá-la.

Aproveitando os serviços do Google Earth, começamos um passeio virtual por aquela rua, e foi aí que recebi um balde de água fria, confesso que passei aquela tarde bem triste.

No lugar daquela casa mágica, cheia de encantos e histórias, havia um edifício igual a centenas de outros, construído por sobre os escombros das minhas felizes memórias dos dias e noites naquela casa. A urbanização e a especulação imobiliária, venceram a história e a cultura, e a casa já era.

Consegui me recuperar do choque, e embora eu nunca mais possa ver aquela casa, ainda a guardo com minhas melhores lembranças. Consigo me recordar de cada detalhe, como se ela ainda existisse dentro de mim, posso passear no quintal num fechar de olhos, me transporto para aquele tempo e lugar, me alegra.

E nisto, nem a política, nem a economia poderão intervir, talvez o tempo possa apagar essas memórias completamente, mas por enquanto ele está do meu lado.

Ricardo Selva
Enviado por Ricardo Selva em 17/07/2015
Reeditado em 17/07/2015
Código do texto: T5313682
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