O Quinto dos Infernos
 
Eu não abro a minha boca para desmentir a pastora que foi quinze vezes no inferno a passeio. Eu não; cada um sabe de suas andanças. Porém afirmo categoricamente que ela só andou nos arredores porque no quinto dos infernos, lá onde o próprio Satanás "cuida" pessoalmente dos seus hóspedes quem andou fui eu, Senhorita Vera, guiada pelo Sr. Virgulino Ferreira da Silva mundialmente conhecido como Lampião, o Rei do Cangaço.

O Sr. Virgulino me levou pela mão na velocidade da bala; sem escalas.
Em chegando, Lampião deu um golpe de vista no demônio da portaria chega o bicho saiu da frente com o rabo entre as pernas.
Entramos. Tudo muito claro e organizado, um demônio enfezado atualizando direto a lista de hóspedes no computador.
Da recepção, onde o demônio nos olhava com ódio pelo rabo do olho, avistava-se três portas brancas com maçaneta de ouro. Na primeira estava escrito "assassinos de crianças". Me deu logo uma gastura, uma vontade de chorar e eu implorei para Lampião me poupar daquilo.
Seguimos, eu de olho no punhal que o capitão empunhava, o mesminho que está lá no Museu do Ceará mas que em espírito só era usado em legítima defesa.
Na segunda porta estava escrito "torturadores de animais". A energia que emanava da sala era tão ruim que eu não quis nem ver o que se passava lá dentro.
Lampião já estava se zangando comigo. Que eu era muito mole, nem parecia ser sobrinha-neta do Caboclo Santana. Fiz um sinal com o olhar e ele deu fé do recepcionista agachado, babando, só esperando que ele ficasse irado para avançar. Respirou fundo, botou o mão no seu Winchester e o bicho deu um pulo, quase caiu mas conseguiu se apulumar nos cascos e foi tratar da lista de hóspedes.
Muito frio, lá, minha gente. Essa estória de lago de fogo ou é mentira ou eu fui levada direto à sala vip.
Apois; seguindo no rastro do Rei do Cangaço cheguei à terceira porta: "vendedores de água". Ah, mas nessa eu fiz questão de entrar. Vou lhes explicar o porquê:

Leitores, a Seca é coisa ruim demais da conta que acontece ao Sertão. Como já disse em outra crônica, trata-se de uma indústria, um fenômeno político antes que natural. Os bichos morrem de sede, a natureza entristece, o sertanejo desespera com o acauã cantando direto no oi dos pau.
O meu povo, graças a Deus, não carece mais de se arretirar para o Sudeste mal-agradecido que inclusive está pagando a duras penas as humilhações que sempre infligiu aos nordestinos. Aqui não há mais retirantes, campos de concentração nem crianças morrendo de fome. Isso deve-se à ajudinha do bolsa-família que é pouca mas dá para ir escapando enquanto a chuva não chega.
O que me deixa indignada é o povo que tem um pouco d'água represada em açude ou em poço profundo retirar o que Deus nos dá de graça e vender o líquido vital. Água não é coisa que se negue a um cristão, minha gente. Pois os criaturas erguem cercas de arame ao redor dos açudes mode os bichos não saciarem a sede ou colocam fechaduras nas tampas das cisternas para os outros "não roubarem o que é deles". E vendem a água potável ao povo sedento e miserável, aumentando arbitrariarmente o preço. Um tambor que ontem, por exemplo, custava R$ 2,50 hoje amanheceu a R$ 3,50.
Virgulino ajeitou os óculos e abriu a porta para que eu entrasse, me escondendo em seguida atrás da mesma para minha segurança bem na hora que o Cão chegou, muito bonito e bem-vestido, balançando satisfeito uma feia cauda vermelha que me fez lembrar um cassaco. Meu guia postou-se à minha frente e eu fiquei só espiando por cima do ombro dele.

Dentro da sala havia uma luz muito clara, uma cadeira e muitas, muitas almas acorrentadas às paredes, gemendo e se lamentando. À chegada do Cão, todos se calaram.
Lúcifer, muito dono de si, sentou-se na cadeira e tocou uma sineta. Nisso entrou um demônio trazendo nas mãos uma jarra de água límpida e um copo de cristal em bandeja de prata.
O Diabo encheu o copo e bebeu fazendo barulho, a água escorrendo pelos cantos da boca. Os gemidos se transmudaram em gritos, "um gole, me dê um gole, só um golinho, pelo amor de Deus!"
O Cão, arregalando os olhos com ar de zombaria, respondeu: "Dar, eu não dou não. Mas eu vendo. É R$ 3,50, tem?"
Como mortalha não tem bolso e caixão não tem gaveta as almas redobraram os lamentos e Satanás, achando graça, derramou o resto da água doce no chão.
De trás da porta Lampião ouviu meus pensamentos (no mundo dos espíritos nada se esconde) e me disse em silêncio "Senhorita, no Céu eu não tive nem cara de pedir para entrar porque matei, saqueei e degolei muita gente. Mas no Inferno também não fico porque nunca fui do nível desses fi de chocadeira".
Tirou o chapéu meia-lua de couro e na rapidez do pensamento eu me vi de volta para casa, para a minha redinha, plena madrugada. Rezei sinceramente um Pai-Nosso, bebi um copo d'água dando graças a Deus, tomei um calmante e peguei a caneta.
Srta Vera
Enviado por Srta Vera em 26/07/2015
Reeditado em 27/07/2015
Código do texto: T5324778
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