O Bicho do Corte
 
Uma vez na vida outra na morte o tio Manoel inventava de ir à igreja. Fazer o que eu não sei que ele não tinha noção de Deus, de pecado nem de comunhão. Mas ia. Deixava o cavalo na casa de um conhecido e descia, todo pronto, no rumo da Igreja Matriz.
A crônica que segue ocorreu em noite de quermesse.
Quermesse é uma moda que o povo inventou pra beber cachaça, dançar e participar dos bingos que a Igreja promove com a bênção do Altíssimo. O tio dava o maior valor uma branquinha, bebia quieto no canto dele sem bulir com ninguém mas se algo não fosse do seu agrado tava feita a confusão, como da vez que ele deu tanto num cabra que o deixou estirado porque esse estava humilhando um rapaz que nem conhecido do tio era mas ele, como eu, não suportava injustiça. E desceu a sola no caboclo.
O tio dizia se dizia sabedor de umas rezas que deixavam-no invisível. Ele dizia as palavras cabalísticas e o povo passava rente a ele sem no entanto vê-lo. E assim ele se escapulia sem dar à milícia o gosto de prendê-lo.
O Tio Manoel era, sem saber, o que o espiritismo chama de médium vidente. Mas disso ele não sabia e terminava por tomar as aparições como reais, quando a gente sabe que não deve de dar confiança a espírito zombeteiro.
Um dia ele dormiu na casa do meu Vô, irmão dele, na cozinha. Quando o povo escutou foi uma pesada e um gemido. O Vô foi olhar o que se assucedera e encontrou o tio Manoel com o pé desmentido, disse que acordou com uma velha muito feia olhando para ele ao pé da rede e deu-lhe uma pesada que pegou com toda força na parede.

Mas essa noite na quermesse foi de paz. O tio assistiu à missa, chapéu na mão em pose de respeito, tomou uma branquinha e pela meia-noite subiu no rumo do Bairro de Fátima.
Quando ele chegou na beira do corte, ouviu um gungunzado atrás dele, como se fora pessoas conversando. Ligou não. Seguiu no mesmo passo só que, quando chegou no meio do corte o bicho se empareou com ele. Quando o tio olhou direito só viu um paletó preto, sem cabeça nem pés, só uns dedos ossudos aparecendo sob as mangas.
O corte, pessoal, é uma estarada feita entre dois paredões de terra.
O tio não pensou duas vezes. Arrastou a faca e deu vários golpes no bicho com gosto de gás só que, quando ele dava fé, o bicho sumia e aparecia atrás dele. E ficaram nessa luta um bom tempo, o tio esfaqueando a assombração que sumia e aparecia a seu bel-prazer.
Ao final do corte, quando a lua saiu de entre as nuvens, o tio não viu mais nada. Só que a faca dele tava só o cotoco. No lugar do bicho ele acertara as paredes do corte e ainda por cima tinha deslocado o pulso com a força que usou nos golpes.
Chegou na casa do Vô sem voz, lívido, a mão era ver uma bola de tão inchada. Depois que lhe serviram água com açúcar, pinga e o transe passou foi que ele conseguiu contar o ocorrido. Disse que não conseguia falar porque a língua se lhe tinha embolado dentro da boca. Foi um dos bichos mais feios que o tio Manoel viu na vida.
Srta Vera
Enviado por Srta Vera em 03/08/2015
Reeditado em 03/08/2015
Código do texto: T5332948
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