Candango véi de guerra


Seu Ivone Aguiar era uma daquelas figuras ímpares, únicas, que nos cativam logo nos primeiros momentos em que as conhecemos, por seu jeito simples, puro e amigo de ser. Com um sorriso aparentemente ingênuo eternamente estampado em sua face, legado que transmitiu aos seus filhos – Jaci, Regina, Tião e Maneca – que dele igualmente herdaram a maneira mansa de falar e, sobretudo, a perspicácia e a espirituosidade.

Grande parte de minha juventude foi passada na casa de seu Ivone, junto com Maneca, grande amigo, onde tínhamos nosso mundo próprio, o quarto de empregada transformado em laboratório, onde nasciam e se concretizavam as nossas grandes “boas idéias” que tantos aborrecimentos causaram a nossos pais e que consolidaram a “boa fama” que nos acompanhou enquanto lá vivemos e que hoje integram o folclórico das histórias que ainda contam.

Sua casa era nosso ponto de reunião, logo após o almoço, depois das aulas. Lá desenvolvíamos nossos foguetes espaciais, com o corpo de bomba de flits que com toda a pompa e requintes de tecnologia eram lançados ao espaço, deixando rastros de fumaça no céu, causando admiração e espanto na garotada e preocupação nos mais velhos; de lá saiam rádios galena do tamanho de caixas de fósforo, precursores dos rádios portáteis, feitos com cristais garimpados na pedreira do Tiné.

Lá, às escondidas, desmontávamos e montávamos daqueles rádios à válvula que seu Ivone possuía, enormes em suas imponentes caixas de madeira e que nunca mais sintonizariam nem mesmo a ZYO-26 - Rádio Difusora de Mimoso do Sul -, que na época falava "para o Brasil e para o mundo!"

Por respeito ao espaço de nosso “laboratório”, à privacidade e ao sigilo do que estávamos desenvolvendo, ali seu Ivone não entrava; ficava, às vezes, à porta, chamando-me baixinho, com sua voz calma e pausada:

- Henrico! - assim ele me chamava!
- Henrico!
- Henrico!

E eu, compenetrado na importância da nova “invenção”, às vezes não respondia, porque não o ouvira. Seu Ivone virava-se e ia embora, falando um pouquinho mais alto, o suficiente para que agora o ouvisse:

- Chamei treis veis, num respondeu morreu!!!

Era ali que consertávamos os isqueiros Zippo e Monopol dos amigos que se iniciavam no cigarro, as enceradeiras e liqüidificadores dos vizinhos para defender uns trocados para a “soirée” de domingo; de lá saíam os projetos de karts, com motor de motocicleta e embreagem de rolha cozida no óleo com que infernizávamos as ruas; ali foi onde aprendi os primeiros conceitos de mecânica, desmontando e montando o velho Candango cinza de seu Ivone, que um dia ficou doido (o Candango, não seu Ivone), segundo suas próprias declarações.

Ainda hoje, vejo-me sorrindo sozinho, tantos anos se passaram, ao lembrá-lo contando os últimos acontecimentos e reclamando, em sua infinita paciência, do que ele atribuía às loucuras do Bagué:

- Henrico, Candango ficou doido, Henrico!!!
- Que qui houve, seu Ivone?
- Eu não entendo, Henrico. Eu cuido doCandango com o maior carinho, lavo e limpo todos os dias, não corro com ele e o Candango não me obedece. Bagué maltrata o Candango, tira as peças dele todas do lugar, monta e desmonta, corre com ele, passa em cima de meio-fio, bota o Candango prá carregar um monte de peso e o Candango fica quietinho e obediente. Imagina que ontem eu fui sair no Candango, ele começou a pular e a correr como um doido e entrou no salão de beleza da Dona Petrina, quebrando tudo. Petrina ficou brava comigo, me chamou de velho transviado, me botou prá correr com um cabo de vassoura.

E concluiu:

- Eu acho que ele só queria fazer um mise-en-plis, Henrico!!!

Talvez por ter passado a maior parte de sua vida defronte ao telégrafo, decifrando seus sons de morse, sem confundí-los enquanto os traduzia com a máquina de escrever e conversava com Maneca, sua rapidez de raciocínio era espantosa.

Certa vez, incomodado com a cabeleira do Zecanha, um empregado que morava em sua casa e que a deixara crescer à moda dos Beatles, resolveu fazer uma “vaquinha” e coletou 5 cruzeiros para que ele a cortasse, estranhamente deixando de lado sua pacífica aceitação de tudo, sua maneira cordata de ser e de viver. Chamou-o, entregou-lhe a grana e sentenciou, repressor:

- Zecanha, toma este dinheiro e trata de raspar esta cabeça ainda hoje, senão você não dorme mais aqui em casa.

E o Zecanha, muito desaforado:

- Ah, é, seu Ivone? E no cu?

Ao que seu Ivone respondeu:

- Se tiver troco, não tem problema, pode raspar também!

Assim era seu Ivone, este grande amigo que adorava passarinhos, principalmente os gaturamos e que todas as tardes ia para a varanda assobiar, chamando-os, enquanto nós, escondidos, respondíamos como se gaturamos fossemos. E ele, maravilhado com a possibilidade de pegar aquele gaturamo que cantava tão bonito, mandou que o Zecanha pendurasse na goiabeira, junto da porta de sua cozinha, um cacho de bananas maduras para atraí-lo para o alçapão, estrategicamente colocado a seu lado.

Mesmo após termos roubado suas bananas e o alçapão, em todos os finais de tarde, seu Ivone continuou chamando pelo gaturamo – e nós escondidos respondendo - o que motivou que comentasse comigo, acho que até desconfiado de minha participação na brincadeira:

- Henrico, eu vou ter que fazer um alçapão gigante para pegar este gaturamo. Ele deve ser do tamanho de um urubu, já que levou meu cacho de bananas e o alçapão. Mas que canta bonito, isso ele canta !!!

E seu Ivone hoje descansa em paz, certamente a bordo de seu candango velho de guerra que tanto amava e ouvindo o canto de seus gaturamos, mas vivo e sorridente em minhas eternas lembranças.
LHMignone
Enviado por LHMignone em 24/09/2005
Reeditado em 05/10/2013
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