Minha cidade


Mimoso do Sul, para quem ainda não a conhece, é uma pequenina cidade encravada entre serras, em um vale cercado por montanhas negras de granito e coroadas, ainda hoje, por algumas réstias de escassas florestas, localizada ao sul do Espírito Santo e indicada na maioria dos mapas deste nosso imenso Brasil por um simples pontinho. Em outros, até mesmo nem é mencionada, por puro descaso ou por implicância, talvez até mesmo despeito.

Para sua melhor localização, é a primeira cidade ao se ingressar no Espírito Santo, após Campos, subindo a BR em direção à Capital, antes de Cachoeiro do Itapemirim, que é mais conhecida por imortalizada por Rubem Braga e Roberto Carlos, seus filhos mais famosos que a cantaram em sonetos, prosas, versos e canções.

Apesar de pequena, é uma cidade orgulhosa, com nome e sobrenome - Mimoso do Sul - para que não a confundam com outra, em outro Estado e que certamente não possui atributos que a identifiquem como “A Pérola do Sul” ou “Cidade Modelo”, como merecidamente era conhecida há anos atrás.

Seu povo hospitaleiro, chegado a um bom papo, recebe cada estranho como se filho da terra há muito ausente e de quem se sente saudades, principalmente se amante de uma boa pinga - eles são recebidos de braços abertos, não só pela imagem do Cristo no alto do morro e que os abençoa.

Em poucos dias este estrangeiro já conhece a tudo e a todos e por eles é conhecido, amigo, adentrando em suas casas pela porta da cozinha. Creio que é o único lugar do mundo onde ainda se mantém a boa prática de se desejar bom dia, boa tarde e boa noite até mesmo a quem nunca se viu antes.

Mimoso realmente tem algumas características especiais, até mesmo estranhas, que a diferenciam das demais: todas suas ruas, bucólicas e que nos transmitem um certo quê de intimidade e acolhimento como se já nos conhecessem, quando por elas caminhamos, sem pressa, ao amanhecer ou ao final da tarde, estranhamente não são retas, possuem uma dobra, uma quebra, como se, pudica, não quisesse se desnudar por inteiro logo à primeira vez, reservando-nos uma nova surpresa a cada trecho.

Ainda não consegui explicações comprovadas para tal fato, porém fui informado de que esta característica decorre de que, quando do início de sua construção, o mestre de obras da recém fundada Prefeitura tinha um defeito no braço que o impedia de abai-lo totalmente, formando um ângulo com o mesmo, ao invés de uma linha reta. Assim, ao indicar para os operários a direção de cada uma das ruas a ser aberta, os mesmos seguiam suas instruções à risca, sempre quebrando a rua ao meio.

Logicamente isto tem que ser bem apurado, pois pode se tratar de fofocas de algum muquiense ou, quem sabe, inconformismo do pessoal de São Pedro do Itabapoana, ex-sede do Município e que alguns mimosenses maldosamente dizem ter sido inteiramente calçada com as pedras fundamentais de obras prometidas e que nunca foram concluídas.

Mimoso é uma cidade de recantos e encantos especiais e que têm que ser descobertos aos poucos, como os segredos mais íntimos da mulher amada, com as vestes despidas uma a uma e que nos vão mostrando toda a beleza e detalhes que a fazem única no mundo.

Assim, se você dispuser de tempo, comece sentando-se à sombra amiga da enorme figueira – que chamo de “a velha senhora” - que domina toda a praça, de preferência ao cair da tarde, com oAngelus tocando na igreja matriz; ouça o barulho das águas correndo na Banqueta, vá caminhando pelo regato que a abastece até o Pocitos, mesmo que hoje já não mais cercado por bambus gigantes como em minha infância e banhe-se em suas corredeiras; volte caminhando pela linha férrea, tentando equilibrar-se, de braços abertos, sobre os trilhos, ou pisando compassado só nos dormentes e descanse na Pedrinha.

Atravesse a cidade, passando pela Champruca (hoje lugar respeitável e sem lâmpadas vermelhas e onde nem mais se lê e placa de advertência: “Por ordem do Senhor Delegado, é proibido levantar as saias das damas”, seguindo pelo asfalto em direção à Coteca e desça até a Usina – se for época de piracema, você verá os peixes subindo a barragem, pulando nas corredeiras e até os pegará com as mãos, ou fazendo um puçá com a camisa – você chegou ao Mata-fome.

Descendo um pouco mais, você verá um recanto todo especial, uma curva suave no rio, com um remanso cercado e encoberto por ingazeiros e, se dispuser de um pedaço de linha e anzol, com um pedaço de banana como isca (que Vaninho, meu querido irmão me perdoe a inconfidência) você certamente pegará piaus e piabanhas.

Existem muitos outros recantos, mais recônditos, mas que têm que ser descobertos aos poucos, não podem ser mostrados assim, tão diretamente.

Por todo o seu passado de grande produtor de café, erradicado nos anos 50 e que hoje retorna como um de seus principais produtos, Mimoso não se desenvolveu como alguns dos outros municípios capixabas, não instalou indústrias, permaneceu como que intocada e insensível à ação do tempo, até mesmo, pode-se dizer, regredindo como regrediu a maior parte das cidades do interior.

Destes tempos de glória e pujança, somente restaram os enormes armazéns de café, imponentes em sua arquitetura da época e que ainda podem ser admirados. Naqueles bons tempos, diariamente via-se um formigueiro humano constituído por centenas de “carregadores”, negros enormes, suados, de torsos nus, com um gorro de couro à cabeça e que, em filas indianas, sorrindo, levavam as pesadas sacas de café para os vagões da Maria Fumaça, fumegante na estação da orgulhosa Estrada de Ferro Leopoldina Railway, com construção coberta, até hoje, por telhas importadas da França.

Assim, de uma população que em seus áureos tempos chegou a 45 mil habitantes, deles hoje somente resta cerca da metade, com seus filhos partindo para cidades maiores, em busca de educação e trabalho, como eu que a deixei há 35 anos atrás.

Nascida há sessenta e nove anos, sob o signo de escorpião, já que efetivamente foi concebida no dia 02 de novembro de 1930, quando um grupo roubou os móveis e documentos da Prefeitura, do Cartório, dos Correios e até a banda de música de São Pedro do Itabapoana, que era a sede do Município e que hoje é seu distrito, levando-os em lombo de burro e fundando-a no dia 26 do mesmo mês, já sob o signo de Sagitário.

As conjunções astrais que regem estes dois signos – Escorpião e Sagitário – foram decisivas para as características da cidade, tornando-a charmosa, atraente, agradável e de personalidade marcante, com tendências à liderança e hegemonia sobre as demais, o que lhes posso assegurar, é verdade, sem qualquer bairrismo.

E isto pode ser atestado pelo grande número de seus filhos que sempre se destacaram nas capitais, ou exercendo funções importantes nas empresas em que trabalharam, principalmente no Banco do Brasil, que ali teve sua maior fonte de bons funcionários.

Apesar desses atributos que lhe garantiriam um futuro bem mais promissor, Mimoso não cresceu, talvez em virtude da eterna divisão em facções contrárias, no futebol, na política, sem a união em torno de uma idéia, típico das cidades de interior.

Conta-se que, em minha tão distante infância, um prefeito resolveu arborizar a cidade, plantando mudas de árvores em todas as ruas. À noite, seus adversários políticos soltaram alguns cabritos que comeram as mudas recém-plantadas. E assim, tantas outras coisas foram ou deixaram de ser feitas para impedir o seu crescimento.

Quando lá retorno, talvez por uma vivência mais cosmopolita, por ter passado por cidades bem maiores, sinto uma pouco de pena por tanto que poderia ter sido feito por aquele pequeno rincão onde nasci, já que tivemos governadores, deputados e senadores, tantos filhos ilustres ali também nascidos, o que a teria desenvolvido, transformado-a em um centro maior.

Mas, quando a revejo quase que inalterada pelo tempo, quando reencontro seus riachos, pedras, árvores, serras, fazendas coloniais, tantos lugares, coisas e pessoas que integraram minha infância e que ainda hoje povoam meus sonhos em terras distantes, agradeço por não ter sido diferente.

Lá, reencontro uma identidade perdida, quase que apagada pelo tempo, volto à infância feliz de menino descalço andando pelas ruas, subindo seus morros, comendo a fruta roubada no pé, soltando pipa, jogando pião e bola de gude, caçando em suas matas, nadando e pescando em seus rios, namorando em suas ruas e praças, sonhando os sonhos puros de menino de interior.

Lá, novamente, sou Henriquinho, o tempo não passou...
LHMignone
Enviado por LHMignone em 24/09/2005
Reeditado em 10/11/2013
Código do texto: T53427
Classificação de conteúdo: seguro