Um tipo inesquecível

Desde a primeira vez que o vi, em meio a tantos outros, minha atenção foi despertada para seu tipo especial, bem diferente de todos os demais que o rodeavam. Não sei bem se por seu porte atlético, ereto, esguio, imponente com seu tronco robusto e bem maior que os outros, ou se por sua cabeça, notadamente bem maior que as dos demais.

Sim, talvez tenha sido por isso, por sua cabeça que, proporcionalmente a seu próprio corpo, destacava-se da dos que o rodeavam, calva, luzidia e com algumas pequenas rugas que lhe davam um ar descuidado e até mesmo intelectual, como que decorrentes de longas noites de vigília, filosofando quanto à efemeridade da vida.

Notava-se em sua face uma certa expressão de tédio, de indiferença quanto aos rumos de seu próprio destino que, sentia-se, ele já o sabia, ou talvez em decorrência do confinamento a que fôra submetido, durante tanto tempo e junto a tantos outros, tempo nebuloso de mais absoluta escuridão, bem diferente do de antes.

Pouco sabia-se de seu passado, somente que nascera e crescera livre, em meio ao verde da natureza, à beira de riachos límpidos que passavam cantando a seus pés, em meio a flores e pássaros que alegraram toda sua infância, enterneceram sua juventude, expectador atento da roda da vida a se alternar em manhãs de sol, tardes de chuva, noites de luas com miríades de estrelas e vagalumes a brilhar a seu redor.

Sabia-se que fôra arrancado abruptamente de seu meio, do convívio dos que lhe eram caros, talvez até mesmo de forma prematura, levado para longe de tudo que conhecia, que amava; em seus primeiros anos de vida, já ouvira alguns mais velhos falando entresi, cochichando e falando baixinho para que ele não os ouvisse, já que ainda não possuía o entendimento necessário, que aquele seria o destino de todos, inclusive o dele.

Mas ele os ouvira e por não entender completamente as razões, o porquê do inevitável destino comum, por inúmeras vezes tentou perguntar-lhes se este destino não poderia ser alterado, ao menos com ele, ao menos daquela vez; mas, sempre, todos se esquivavam as suas perguntas, respondendo-lhe que ele compreenderia mais tarde, que ainda era muito novo para se preocupar com estes assuntos, certamente para não vê-lo triste, para não permitir que a doce inocência de seus primeiros anos de vida fosse toldada por um conhecimento tão profundo da vida, da morte.

Contudo, ele os ouvira e agora sabia. Sua vida não mais poderia seguir o rumo normal como a dos de sua idade, não mais poderia prosseguir como antes, como se tivesse toda a eternidade a sua frente; sabia que o sol que se punha, ao final de cada tarde, poderia não aquecê-lo na manhã seguinte; que as estrelas que ora brilhavam a seu redor talvez não mais lhe fizessem companhia, imerso em noite escura.

E isto o fez triste, diferente dos que o rodeavam, fez até com que se desenvolvesse mais rápido, ansioso por concluir seu ciclo inevitável, impassível ante o inexorável que afinal ocorreu, ceifando-o, dilacerando-o, moldando-o ...

Assisti, perplexo, seus momentos finais – vi sua cabeça explodir em um clarão de luz e seu corpo, consumindo-se em chamas, retorcer-se, curvar-se, contudo altivo como que cônscio de estar encerrando o ciclo vida-morte-vida que tanto o angustiou e, finalmente, protegido do vento na concha de minhas mãos, cumprindo seu destino de palito de fósforo e acendendo meu cigarro.
LHMignone
Enviado por LHMignone em 24/09/2005
Reeditado em 06/10/2013
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