Lembranças

— Se há uma coisa que eu odeio é o tempo. O tempo destrói tudo. Não é o homem que faz isso, é o tempo. O tempo destrói até o homem. Destruiu um amigo meu. Grande amigo de infância. Agora... Os contextos estão todos diferentes. E pior: diferentes e inaceitáveis para mim. O que poderia haver de errado comigo?

— Contextos? Que contextos?

— Pense se fosse com você. Um grande amigo seu de infância desaparece por uns tempos de sua vida. Você vive normalmente até que o reencontra. O cara está totalmente diferente. Não digo só na aparência, pois essas coisas pouco importam. Digo no interior. Falando em gírias obscuras, com olhos perdidos e cigarrinho na mão. Eu não agüentei.

— As pessoas mudam. Você também mudou. Só que não começou a usar drogas.

— Então entende o que quero dizer? Como posso sentir-me animado ao rever um grande amigo meu se ele...

— ...Não é mais o que foi. Sim, percebo onde o problema está. Você gostaria de reencontrar não o físico de seu amigo, mas o seu amigo de suas lembranças. Como um bom saudosista, você gostaria de voltar no tempo, para a época onde as coisas eram mais simples, quando ninguém fumava nada e o máximo de desentendimento que existira era um chamar o outro de “marica”.

— Mas isso é impossível.

— Em momento algum eu disse que era. Mas é o que você quer. Ou melhor, é o que o faria se sentir melhor. Mas, diga-me: o que tem agendado para os próximos dias? Vai realmente encontrar-se com ele para aquela cerveja?

— Ele disse que um outro grande amigo nosso também iria. Disse que conseguiu contatá-lo há algum tempo e reataram a amizade.

— E você tem medo que esse outro amigo esteja, senão igual, pior que ele?

— Seria o empurrão diante do abismo.

— Lembre-se do que lhe falei. Você está agarrado a lembranças. Não viva dessa forma. Lembre-se de que eles são seres humanos que mudam conforme lhes parece conveniente. Se um deles não se tornou o que você esperava, digo-lhe até que não deveria aclamar tanto a amizade que tinham quando mais jovens. Se não tivessem se afastado, talvez até ele o tivesse levado para as drogas. Aí como iria ser? Certamente você não teria boas lembranças dessa amizade. Pense nisso. O “ele” dele jovem é só um projeto do “ele” dele que você reencontrou.

— Mas nós não fazemos decisões nas nossas vidas? Ou você é daqueles que acredita que o destino já está escrito e nós só temos a ilusão de tomar decisões?

— Independente disso. Acho que se você for encontrá-lo, deve ser só para o bem da amizade que um dia vocês tiveram. Não vá com esperanças de uma nova amizade. Vá, diga “oi”, lembre dos velhos tempos, e “tchau”.

— Não posso fazer uma visita-esmola para um amigo que já me deu o lanche quando eu estava com fome.

— Então por que não tenta fazer uma diferença na vida dele e o tira desse mundo? Talvez fosse o destino... Reencontrar-se anos depois para um salvar o outro. Ele te deu o lanche um dia e te livrou da fome, agora você o livra das drogas. Não é bonito?

— Você fala em se livrar das drogas como se fosse a mesma coisa que mudar de canal.

— Tente. Só tente. Invoque os velhos tempos. Com certeza é o que ele está pedindo, te chamando para tomar uma cerveja, e tudo mais.

Não eram psiquiatra e paciente. Eram dois amigos de infância que há muito tempo não se viam e viveram vidas totalmente diferentes. A conversa ocorreu muda, com cada frase pulsando do âmago de cada um para ser traduzida pelo outro.

Ricardo Prado
Enviado por Ricardo Prado em 20/06/2007
Código do texto: T534908
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