FLECHAS AO LONGE

A vida passa num piscar de olhos e para Noêmia não poderia ser diferente. Quando se deu conta estava beirando os oitenta e com um abacaxi dos grandes, pra descascar. Sabia que seu inevitável destino seria um asilo, por conta do que tinha aprontado. Era de se esperar. Mas será mesmo?

Na sua visão, talvez estreita, talvez não, tinha que viver intensamente e nem se importava com suas pequenas negligências para com os filhos e netos. É provável que não tenha ensinado o verdadeiro valor de uma família unida. Tinha um egoísmo infundado ou, quem sabe por ter entendido errado algumas orientações de sua terapeuta, que, aliás, passou anos em tratamento com uma. Aquela cantilena de que “primeiro eu e depois os demais” calou fundo no seu modo de entender. Havia sempre um discurso pronto quando vinha à baila este tipo de inter-relacionamento familiar. Suas palavras eram como flechas lançadas no ar, tal era o potencial de belicosidade da viúva. As pedras que apareciam no seu caminho ela apanhava e as lançava para frente e não para os lados. Suas flechas também.

Trilhar o caminho da vida é inexorável e o passado quase sempre vai se tornando uma carga.

Seus filhos já não a visitam mais, seus netos pouco aparecem.

As restrições da idade começam a fazer efeito.

Tem que decidir entre o asilamento e o convívio com a depressão. O que fazer?

E é nesta reta de chegada que todas as flechas lançadas estão cravadas em seu caminho e as pedras estão lhe dificultando o andar. Não há mais força para retirar as flechas cravadas no chão e nem remover todo aquele pedregulho.

É tempo de repensar, reavaliar conceitos e tentar a reaproximação.

É certo que a sabedoria da idade vai lhe abrir uma janela de entendimento com ela mesmo. Entretanto a dúvida que persiste é a de que seus filhos e netos estão ou não tendo o mesmo entendimento. O que faltou a Noêmia? Com certeza foi ensinar a gratidão. Seus filhos talvez não lhes sejam gratos porque assim não aprenderam ou não apreenderam da vida. Culpar-se agora não é o melhor remédio e muito menos ter arrependimento. A fase é outra. Noêmia sabe que terá que mudar sua postura para o seu próprio bem estar. Ser grata com as coisas da vida e não ficar inerte. Tem a convicção de que se mover-se neste sentido o Universo mover-se-á também. É a lei da Vida. No seu caso, de repente, asilar-se seria uma boa alternativa já que está precisando de apoio. Mas ainda existe a possibilidade de contratar uma cuidadora. Ainda não decidiu. Tem a consciência que os tempos chegaram e a reta de chegada da pista olímpica da vida está a sua frente e não há como retornar. É avançar ou avançar.

Quando envelhecemos, com certeza não nos transformamos em santos ou coitadinhos, nada disso. Podemos ter adquirido mais sabedoria, mas se não a usarmos, qual o valor que ela tem?

Esta corrente de ingratidão só se rompe quando um elo é quebrado. Noêmia convenceu-se que ela era este elo e resolveu agradecer efusivamente a todas as coisas do Universo, a todas as pessoas desta vida e aos seus antepassados. Velhice é apenas uma fase como outra qualquer, mas tem as suas particularidades. Por ser velho não quer dizer que nos coloquem num pedestal, nada disso. Há que procurar recursos materiais e afetivos, afinal, a vida continua até acabar...