Manual Básico do Cidadão Solidário

Centro de São Paulo, inverno, uma sexta-feira nebulosa e fria, ameaçando chuva. Três e meia da tarde, Praça de República, quase em frente à Rua Sete de abril existe um quiosque de informações turísticas, mantido pela Prefeitura, com mapas para consulta, e uma pessoa responsável pelas informações.

Eu voltava de uma sessão de terapia com minha psicóloga, praticamente desempregado, mas esta é outra história, pensativo sobre uma realidade dura mas que eu estava disposto a encarar. Na noite anterior, perdi o sono assistindo ao filme “O discurso do rei”, que me trouxe entendimento de um problema pessoal grave que eu estava enfrentando.

Raramente faço o mesmo caminho todas as vezes que me desloco para lá, como vou toda semana não quero tornar rotineiro o trajeto, uma forma de não cansar-me da metrópole. Na ida já houve uma coincidência boa, mas na volta ocorreu o fato que me motivou a começar a escrever este projeto, poucas horas depois do acontecido.

Compro incensos na banca de uma vendedora que os faz artesanalmente e só está ali entre sexta e domingo, portanto resolvi descer do ônibus em um ponto mais distante que o usual e voltar por ali, e no caminho eu vi esta mulher chorando, encostada no semáforo de pedestres ao lado do quiosque já descrito anteriormente.

Eu vinha passando e vi a cena, ela estava de cabeça baixa e aparentava ser bem pobre, poderia bem ser uma moradora de rua. Lembrei-me que eu só tinha uma nota de cinqüenta e meu bilhete único, e passei longe dela no sentido da vendedora de incenso, refletindo. Comprei os meus incensos e troquei o dinheiro, resolvi voltar lá e perguntar se podia ajudá-la com algo para matar a fome, se o problema fosse este.

Fui até lá, como a funcionária das informações estava na porta, e a mulher chorando de cabeça baixa, perguntei à primeira se ela sabia do que se tratava. Ela me respondeu que a moça não sabia onde morava e estava perdida, alguém havia perguntado e disse que talvez iria chamar a polícia e foi embora. Fui falar com a mulher que chorava.

Parei ao seu lado a uma distância que não fosse ameaçadora, inclinei minha cabeça um pouco me aproximar dela, que cobria o rosto com os braços e continuava chorando copiosamente. Perguntei se ela estava precisando de ajuda. Ela levantou a cabeça e vi seus olhos pela primeira vez, seu desespero era evidente.

Assim que ela respondeu, percebi que ela tinha algum tipo de deficiência, uma dificuldade para se expressar que passei a entender como pessoal, não era efeito de nenhuma substância. Perguntei para ela o seu nome e ela respondeu “Maí”. Talvez fosse Maíra ou Maria, perguntei se ela sabia onde morava, se lembrava de onde tinha vindo, o nome de algum parente e ela não sabia nada, percebi que não era amnésia, talvez ela não tivesse se desenvolvido completamente e não soubesse estes detalhes desde antes. O fato é que sua situação de vulnerabilidade era inegável.

Não podia dar minhas costas a esta situação e ir para minha casa, se antes eu já não pude, agora eu já estava comprometido. Como eu tinha visto alguns policiais militares da cavalaria ali próximos, descansando seus animais, fui falar com eles, na expectativa de no mínimo conseguir informações sobre o serviço social indicado para auxiliar nesta situação específica.

Os policiais foram muito prestativos, mas como estavam à cavalo não poderiam encaminhá-la ao serviço social competente. Chamaram uma viatura de área que chegou comandada por um tenente. À esta altura, a moça já tinha comido um pastel e tinha uma pequena garrafa de água, estava sentada junto a uma árvore rodeada de policiais e eu. Pelo menos ela não estava mais chorando.

O tenente assumiu a responsabilidade de encaminhá-la ao serviço social próximo da Praça Princesa Isabel, estabelecendo como segunda opção a Santa Casa de Misericórdia, me prontifiquei a acompanhá-los mas ele me assegurou não ser necessário, até mesmo porque eu não cabia na viatura. Agradeci a todos com um aperto de mão, despedi-me da Maí que me respondeu com um sincero “bigao” e um sorriso.

Continuei o meu caminho pra casa, descontente ainda, comovido diante desta situação tão tocante que, entretanto, povoa cada esquina do centro. Chorei sem alterar a expressão do meu rosto, sem diminuir o passo, sou criado no centro desde meu primeiro emprego sério, de office-boy, as lágrimas, porém, não consegui segurar.

Até me esqueci de tomar a injeção de vitamina B12 que deveria, e horas mais tarde minha mulher me perguntou se eu tinha passado na farmácia e me lembrou. Fui, e no momento que eu saí da farmácia com o lado direito das minhas nádegas doendo me ocorreu precisamente a ideia e o nome deste livro: O Manual Básico do Cidadão Solidário.

Dedico todo este trabalho a esta moça por quem eu fiz quase nada, o básico.