Um dia em meu consultório.

Parecia apenas mais um dia no consultório. Levantei-me me sentindo estranhamente mal. Sentia-me sufocada. Uma falta de ar incômoda que me deixou alguns minutos a mais na cama.

No fim das contas, consegui me levantar. Eu tinha vinte e mais alguns anos e uma recém formada carreira de psicanalista. Considerava-me uma mulher feita. Ainda morava na casa dos meus pais e nem mesmo tinha um carro, mas por dentro estava uma pessoa decidida, forte e principalmente, mulher. Orgulhava-me de ter sobrevivido à minha conturbada adolescência, que secretamente ainda mexia comigo. Apesar dos pesares, eu havia passado daquela fase; pelo menos era o que eu achava até aquele dia. Meus pais me deixaram no consultório que me deu meu primeiro emprego e quando pisei ali dentro, meus pelos se arrepiaram e um calafrio percorrer meu corpo quando vi quem me esperava. Eram os meus amigos. Tão maduros e mudados eu só reconheci aquela pessoa por causa daquele olhar e daquele cheiro. Eu tremi dentro do abraço que ela me deu. E junto com a tremedeira veio a cascata de sentimentos que senti no ensino médio. Todo o sentimento que guardei durante aqueles meses voltou com força e me fez tremer nos braços dela. Ela não notou e eu não fiz questão de falar.

Separamo-nos. Ela com um sorriso e eu com uma tentativa de fazê-lo. Acho que estava com uma careta ao invés disso, mas ela não pareceu perceber. Esboçou um sorriso tímido e logo voltou a se misturar com os outros. Eles disseram que estavam ali para testar meus conhecimentos. Eu aceitei, é claro, e um por um eles entraram em minha sala. Ficaram durante 50 minutos cada um.

Eu sabia que faltava alguém para entrar. Faltava ela.

E quando ela abriu a porta, minha respiração falhou, minhas mãos soaram, meus joelhos tremeram e eu agradeci por estar sentada, senão cairia. Ela me sorriu e sentou-se a minha frente no divã, de costas para mim. Eu sabia que precisava colocar meus conhecimentos em prática e iniciei o assunto esperando que ela se abrisse, mas quando o fez, desejei que ela jamais tivesse aberto a boca.

- Eu amo alguém. - foi apenas o que ela disse. O suficiente para meu coração se agitar loucamente. Eu assenti como se ela pudesse ver e me arrumei na cadeira.

- Isso é ótimo. - menti e vislumbrei um rastro de sorriso em seu perfil relaxado.

- Eu não acho que isso seja tão bom. - ela inclinou a cabeça para o lado como se analisasse sua situação e meu agitado coração se apertou.

- Como assim?

- Não é correspondido. - ela negou com a cabeça e a abaixou.

Ergui as sobrancelhas, surpresa. Eu podia sentir meu coração se quebrando, mas eu não pararia. Era meu dever.

- Fale mais sobre isso. - consegui manter minha voz branda. Ela ficou um tempo em silêncio até voltar a falar, e mais uma vez desejei que ela tivesse ficado quieta.

- Foi como mágica. Eu o vi e senti algo diferente. Eu passei a observá-lo todos os dias e conforme nossa amizade crescia, eu me sentia mais diferente quanto a ele. - ela fez uma pausa.

- Diferente como?

- Eu não sei. Algo em mim parece se acender quando ele está por perto. Um dia, quando estava em casa, flagrei-me pensando nele e sorrindo. Desde esse dia, então, passei a observar minhas reações perto dele. As borboletas em meu estômago, a sensação de liberdade, o suor das mãos... - fechei meus olhos querendo fechar meus ouvidos enquanto ela falava. Eu sentia as lágrimas chegando e torcia para que conseguisse segurar. - percebi que estava apaixonada por ele.

Meu coração quebrado se partiu em mil pedaços. Ela estava amando alguém. Alguém que não era eu.

- E por que você diz que isso não é bom? Como sabe que não é recíproco? - perguntei secando o suor de minhas mãos em minha calça.

- Eu vejo. Vejo no olhar dele que eu sou apenas uma amiga e nunca vai passar disso. E é isso que mais machuca.

Não consegui evitar que uma lágrima solitária escorresse. Ali, naquele momento, eu não era uma mulher formada de vinte e poucos anos. Era uma adolescente de 17 anos com os hormônios descontrolados e uma paixão incontrolável por uma menina. Minha conturbada adolescência foi trazida à tona por ela. E mais uma vez eu desejei que ela nunca tivesse falado.

Ouvi-a fungar e a vi secando os olhos com as pontas dos dedos. Eu me inclinei e apertei o seu ombro gentilmente mostrando que eu estava ali por ela, mesmo que estivesse muito pior do que ela.

Aos 17 anos eu me apaixonara perdidamente por uma garota. Uma garota incrível. Eu me perguntava como as pessoas da sala não viam a aura de beleza, maturidade e encantamento que a rodeava. Eu me apaixonei, como qualquer mortal o faria se conseguisse reparar em cada detalhe dela. Mas esse amor platônico me destruiu. Desabou uma parte de mim e a outra se tornou apenas alguns cacos perdidos. Eu precisei me levantar e tive ajuda de alguns amigos, mas aquela cicatriz ficou ali, intocada, até aquele dia.

Naquele dia, ela havia reaberto a ferida e eu estava deixando que ela sangrasse enquanto meu amor se desmanchava em elogios para o seu atual amor.

Foram cinqüenta minutos de tortura e quando ela se levantou do divã, olhou para meus olhos inchados.

Eu nunca tivera coragem de contar a verdade para ela. Não fui capaz de desvendar o mistério das flores, dos presentes anônimos, simplesmente a deixei com a dúvida.

E quando ela me encarou, não percebeu que algo estava errado, e se percebeu, não demonstrou. Despediu-se de mim como todos os outros e saiu da minha sala.

E quando a porta se fechou, eu desejei amargamente que nunca tivesse me apaixonado, mas desejei também que ela sumisse de minha vida, para sempre.

Milena Hipólito
Enviado por Milena Hipólito em 20/09/2015
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