Rua José de Alvarenga

Acho que tudo começou naquele dia chuvoso. Não tinha nenhum pensamento na cabeça. Ou os que tinha não era nem interessantes. Eram sensações vagas. Do alto da sacada daquele prédio, no parapeito, olhava lá embaixo a calçada úmida, a chuva caindo fina e amiúde. Sem pressa. Sem pressa também corria meu coração. Veio-me aquela sensação estranha com ele assim tão próximo. Tinha os cabelos compridos, ondulados, e era tão magro e anguloso como seu rosto, de olhos grandes um pouco languidos. Sorria sério e enfezado, e dava para identificar a voz dele em meio aos outros com quem ele conversara, mas veio-me a estranha sensação, quando ele ficou ao meu lado. Tentei encará-lo, voltei imediatamente meu rosto como que constrangido, embora ele me sorrisse tão amistoso e fechado. Cruzava os braços e andava entre os balcões de discos. As paredes forradas com posteres e fotos de bandas Punks e Metal. Sempre distribuía panfletos com anúncios de eventos, que não sei por que nunca fui, e neste instante então que minha mão ficava tão próxima a dele, então eu notava aquela aranha tatuada na sua grande mão branca de longos dedos, e a teia de onde ela descia estava tecida, na verdade, tatuada junto ao seu cotovelo, gigantesca de um esverdeado azul cinza. Ele abaixava os olhos como se notasse meu interesse. Sempre pensei em falar qualquer coisa, perguntar pela ideia da tatuagem, algo assim. Mas não havia coragem pra nenhum interesse. Não havia coragem pra nada. O que eu escondia, escondia de mim mesmo, pisando em terra estranha num mundo conhecido.

A cada dia crescia. Uma vez ao fim de tarde, outra vez num sábado, antes e depois de um sacolejar dentro de um coletivo sucateado numa estrada esburacada. Minha vida por fora era vaga, corria tortuosa, aos freios e breques, me tropicando, mas não me machucava, pois eu corria solto, livre, com pista livre sem precisar de freios por dentro. Linhas certas de um livro antigo, de uma história nem minha nem de ninguém. Inventava. Fugia-me. E tudo que eu ouvia por fora não tinha nenhuma significação. Eu gostava daquilo por dentro. Assim, corria livre, cavalo solto no pasto, ao sol, ao ar livre. Grande relincho para o céu opalino.

Aconteceu longo intervalo. É que ele era algo/alguém que saiu como que de dentro do meu universo interior e aparecia por fora, como se para ser necessário que eu notasse o exterior. Mas seus olhos fulgiam espinhos, era uma languidez de pestanejar com certo desprezo e disfarçada ojeriza. A gente conhece. Notava-se. Ingenuamente, eu pergunto hoje, quem notava. Ora, ora. Seus olhos passaram aos poucos, embora tão longo intervalos, fustigar espinhos. Seria impressão?

Tempos depois. Como nem adormecido. Mas desperto, desperto como quem sonha o mesmo sonho. A cidade era a mesma, o prédio o mesmo, até aquela mesma vitrine de livros, só que agora se entrava por baixo, mas não tinha bem certeza se só agora, achei ali no momento, continuo achando por ainda não ter certeza de nada do antes. O estranho e normal é que tudo estava como antes, como apenas deixado para trás de um fim de semana para outro. Mas ali num canto ou em outro teimava algo mais sujo, mais sórdido, mais olvidado. Tudo lambido pelo mesmo sol: a mesma praça, os mesmo bancos, as mesmas agências, as mesmas lojas, o mesmo cantinho de comer pastel no meio e inicio da rua, nunca se deu pra se ter tanta certeza.

O estranho foi ter subido até lá, aquela rampa íngreme. Nem todas as mesmas lojas. Mas a dele, estava lá. Bem mais moderna. Moderna mesmo? Calçados, no lugar de LPs, mas as blusas pretas eram as mesmas, os skates também. Meu olhar era outro, o dele era o mesmo, mas em parte. Ele era o mesmo como se eu tivesse voltado no tempo ou se aquele mesmo tempo tivesse voltado. Não sei por que tive medo, afinal seus olhos não fulgiam nem tampouco fustigavam mais espinhos. Olhei esguia e rapidamente pra seu braço, em meio que fiz qualquer pergunta sempre equivocada - pois toda qualquer pergunta sempre é equivocada - e assim como seus olhos a fulgirem e fustigarem espinhos a aranha parecia ter deixado o braço dele com teia e tudo.