AQUARELAS DO TENENTE CHAMBERLAIN

Quando hoje analisamos a realidade brasileira, e tendemos a um pessimismo catastrófico, é bom nos lembrarmos das raízes de nossa história. O Brasil de hoje está milhares de léguas à frente do que ele era no tempo colonial. Ainda quando D. João VI apontou por aqui, em 1808, o interior do Brasil estava mais fechado aos estrangeiros do que o Tibet, naquelas épocas. Os portugueses desconfiavam de que os estrangeiros viessem para roubar ouro e diamantes. Podiam demorar-se, o quanto quisessem, à beira-mar, mas, afastando-se da costa, a polícia não os perdia de vista.

Os ingleses forçaram D. João VI a abrir os portos brasileiros aos navios estrangeiros. De modo especial aos ingleses. Isto também significou uma política mais liberal para com os estrangeiros que quisessem visitar e pesquisar o interior do Brasil. Até a vinda de D. João VI há poucas notícias sobre o interior do país, tanto no que se refere à natureza, aos minerais, como aos costumes das populações.

D. João VI começou a permitir, e até a incentivar, a vinda de artistas e pesquisadores ao Brasil. Vieram franceses, ingleses, alemães e, aos poucos, também de outras nações. Entre os visitantes ingleses destacou-se o Tenente Chamberlain que, entre 1819-1820, registrou em gravuras paisagens e costumes do Rio de Janeiro e arredores. Em 1822 lançou em Londres sua obra com o título: “Views and Costumes of the City and Neighbourhood of Rio de Janeiro, Brazil”. A Livraria Kosmos, do Rio de Janeiro, em 1943 republicou esta obra, em edição limitada, contendo o curto texto de Chamberlain e a tradução para o português, com o título: “Vistas e Costumes da Cidade e Arredores do Rio de Janeiro em 1819-1820”.

Não pretendo aqui comentar esta obra monumental do Tenente Chamberlain, mas assinalar algumas observações que faz em relação aos escravos, então mais numerosos no Rio de Janeiro do que a população livre. Em relação a algumas de suas gravuras, Chamberlain explica:

“O número de infelizes africanos, importados para o Rio de Janeiro, cada ano, do Congo, Angola, Benguela e Moçambique, pode ser comutado numa média de 20.000... O Estado aufere deste tráfico deshumano... cerca de 20.000 libras esterlinas por ano. O sofrimento destes miseráveis cativos durante a viagem da África é indescritível”.

“Os baixos das casas são reservados a esses infelizes, que se amontoam uns sobre os outros, à espera de comprador... (são) de índole pacífica e até mesmo alegres... (um capataz) convida os escravos a cantar, a se mostrarem contentes... a atitude deles indica poucos sinais de tristeza.”

“Quando uma pessoa deseja comprar algum, visita os diversos armazéns, andando de casa em casa, até achar um que lhe agrade, que é, então, chamado para fora e submetido à operação de ser apalpado e examinado em diversas partes do corpo e dos membros, exatamente como se faz com o gado no mercado. Obrigam-no a andar, a correr, a esticar violentamente braços e pernas, a falar, a mostrar a língua e dentes, fatores considerados os mais seguros para descobrir a idade e avaliar a saúde... A gravura mostra um brasileiro... examinando os dentes de uma negra, antes de comprá-la...”

“Muitas famílias vivem exclusivamnte do trabalho de escravos...”

“Enterro de negro:.. O cadáver é costurado dentro de um saco rude e depois colocado em uma rede, pendurado por uma vara, e coberto com um cobertor velho. Assim é carregado para a fossa, por dois negros, sem cerimônia e sem lágrimas. Murmura-se uma prece diante do cadáver. E a terra é jogada por um dos carregadores enquanto o outro, com os pés e um pedaço de pau, soca a terra sobre o corpo. Isto feito, vão-se embora. Eis o enterro simples de um negro.”

Bem. Sem comentários filosóficos.

Para quem não se nega a acreditar em Chamberlain, eis um pouco do Brasil de 1820. A genética nos advertiria apenas que os gens, dos terrivelmente desumanos negociantes, compradores e capatazes dos infelizes escravos dos séculos de tráfico negreiro, continuam vivos nos herdeiros desta gente sem sentimentos e sem compaixão. E quem sabe se, com tantas humilhações, desumanidades e sofrimentos, com consequente ódio mortal, não se agregaram à genética de alguns escravos, e seus descendentes, tendências perversas. Acredito que esta herança maldita, tanto entre os negreiros como entre os escravos, se a podemos explicar pela biologia, hoje, na maioria dos brasileiros envolvidos, se encontra em estágio latente.

É bom que, no Brasil de hoje, estes gens desumanos e perversos, se existirem, sejam inibidos pela educação e por leis humanitárias. Verifica-se, no entanto, que isto nem sempre se constata em nossa realidade, impregnada de crimes e falcatruas. Mesmo assim, podemos ser otimistas, pois, entretanto, muita melhoria já aconteceu, e continuará acontecendo, no decorrer de nossa história.

Inácio Strieder é professor de filosofia e escritor.- Recife-PE.