Fabulosos covardes

Existem duas categorias de "volta ao passado": uma delas é aquela que

sempre recorremos nos momentos de decepção e uma certa amargura e tem,

geralmente, um caráter destrutivo. No entanto, há outra, essa mais

produtiva e benfazeja que nos faz ver nas experiências passadas um

farol frente à alguma circunstância da vida.

Para variar, uma conversa de rua captada indevidamente, me lançou na

reflexão sobre a questão da coragem e da covardia. Dois amigos

caminhavam pela rua e , pelo que pude entender, um deles não reagira a

uma provocação, quase agressão que sofrera. Por esse "não ato", pela

falta de ação, recebeu uma dura reprimenda:

- Quer saber? Eu acho que você foi um baita de um covarde!

O outro argumentou que não se considerava como tal porque havia sabido

renunciar à uma violência que só realimentaria um ciclo vicioso.

Isso me fez pensar e me remeter diretamente aos meus 10 anos, na

quarta-série do hoje ensino fundamental, naquela época primário e à

Escola que freqüentava, a hoje Escola Estadual Moraes Barros, aqui na

cidade de Piracicaba onde moro.

Aquele ano ficou marcado por dois acontecimentos totalmente distintos

mas que ficaram na memória: o primeiro e mais significativo foi a

primeira ocasião em que sentir pulsar dentro de mim algo que mais

tarde poderia ser chamado de amor mas que naquela altura da vida era

apenas uma cumplicidade entre pessoas que ensaiavam serem garoto e

garota mas que naquele momento e época, eram apenas um menino e uma

menina. Estávamos constantemente juntos e era uma figura loira , bela

e cuja figura ainda me vem à mente, 32 anos depois mas sem que eu

consiga lembrar-lhe o nome. Apenas me recordo que era filha de um

professor da ESALQ/USP (Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz

da Universidade de São Paulo) e que em uma tarde qualquer despediu-se

de mim porque o pai iria para os Estados Unidos. Lembro-me da última

vez que conversamos e também dela me contando que não mais nos

veríamos , como não nos veríamos nunca mais e que minha reação foi

apenas me afastar, procurar novos amigos. Por isso digo que não a amei

porque amar e ser abandonado costuma ser , para todo o sempre, uma dor

só superada pela perda dos filhos, algo que acontece também pela

privação do ente amado.

O outro fato tem mais a ver com o que me propus a escrever hoje: a

violência. Por incrível que possa parecer, eu era um guri gordo,

baixo, cheio de problemas respiratórios, principalmente bronquite que

me incomodou até os doze anos de idade. Não sei por qual dos dois

motivos eu era mais vítima dos deboches e da gozação dos amigos: ou

pela forma física ou pelas limitações. De qualquer forma, era o alvo

preferido de um menino em especial, Benur, que vivia me batendo.

A falta de reação era a senha para que seguisse me batendo até que meu

pai resolveu botar um ponto final naquela história, vexatória para mim

e para ele.

- Se você não bater nesse cara, quem vai apanhar de mim é você!

Duas coisas não me ocorreram no momento: lembro-me de ter apanhado de

meu pai apenas uma vez (por motivo justo) e deveria com toda a certeza

duvidar de sua promessa e a segunda, mais importante, a saída e o

pátio não eram os melhores lugares para se arranjar briga.

No entanto, reconheçamos que a figura paterna impunha (impõe?)

respeito e a briga seguiu-se como uma ordem inquestionável. Não me

lembro detalhes dela e não direi que me orgulho de ser um brigão de

rua, tão estranho à minha personalidade e ao meu caráter.

Só lembro-me que fui repreendido pela diretora que vira tudo e que não

me deu suspensão talvez por ser amiga de minha família. Ao explicar

que meu pai havia mandado eu bater, não recebi crédito, ou seja, além

de brigão passei por mentiroso.

O que isso tem a ver com a conversa dos dois rapazes? Respondo: para

mim, o sujeito que negou-se a brigar é um covarde digno dos maiores

elogios e que me causou profunda inveja.

Quem bom seria se eu tivesse suportado a eventual fúria paterna do que

me exposto ao papel ridículo de ser um "valentão" de meia-pataca.

Deveria ter sido um corajoso de pataca inteira ao afirmar que não iria

bater em Benur. Claro, desculpo a mim mesmo pela imaturidade e não há

o que censurar.

A coragem é boa quando ela constrói, quando se luta menos fisicamente

e mais nos termos de negação da violência. Corajosos são, portanto,

aqueles que vão contra um estado de coisas para transformá-los e ,

heroicamente, suportam tudo inclusive a violência física que lhes é

imposta nesses atos de coragem.

Se isso é verdade, os corajosos são muito poucos, são contados com os

dedos de uma única mão. Pensando bem, nem precisaria chegar à esse

ponto, não é verdade? Quem não reconhece coragem em alguém que

reivindica seus direitos, que afronta pseudo-autoridades quando abusam

daquilo que receberam por obrigação, abrigam um perseguido ou ainda,

enfrentam os "valentões" da vida na defesa de quem sofre injustiças?

Talvez o que falte ao mundo é um pouco desses maravilhosos e

admiráveis "covardes". Enquanto abundarem os "valentões" e os

"pitboys" e congêneres, estamos todos ameaçados, inclusive

fisicamente. Talvez à quem foi dada a responsabilidade da tutela de

filhos e filhas, naturais ou adotados, crianças em geral, falte um

pouco uma disposição para ensinar à cada um deles a responsabilidade

pela vida. É apenas desses gestos que possam parecer simples mas tão

ignorados e de tanta relevância que dependa a possibilidade de

podermos ou não viver em um mundo um pouco melhor daqui alguns anos.

Nunca deixei de ser um otimista mesmo frente aos mais desesperadores

fatos e momentos da vida humana e não desistirei de lutar para que

essa esperança sobreviva e dê frutos.

Vivam os fabulosos covardes! Que da covardia aparente mas da fortaleza

explícita, nasça um novo mundo

André Vieira
Enviado por André Vieira em 25/06/2007
Código do texto: T540156