Crônica de um Dia Quente.

O sol derretendo o asfalto e um ciclista de seus aproximados setenta e três anos, numa das quebradas da vida na Vila dos Cachorros, enterra o pneu de sua monareta 1974 e cai. Cai com os cotovelos na sarjeta e sua dentadura voa próxima à mesa do boteco onde quatro ébrios bebericam seus dias. O velho ciclista, tateando o chão quente, sem sentir o braço quebrado e gemendo de dor, busca sua dentadura como se fosse a última coisa a ser buscada por uma animal prestes à extinção, onde a fome e o instinto imperam sobre qualquer razão. Sua gana por aquele objeto que substitui dentes é desesperadora, porém humana, humana demais, enquanto os ébrios,os malditos inchados e absortos pela estupidez, riem a ponto de um deles defecar na cueca furada ganhada de sua tia no réveillon de 1979. Uma senhora caridosa, empunhando sua sombrinha para não morrer de câncer de pele, a fecha e soca na cabeça de cada bêbado que ri, tentando agachar meio sem joelhos para ajudar o senhor que àquela altura, perdendo a esperança, já quase chorava. Por sorte a senhora conseguiu encontrar sua dentadura, seu resto de corpo, aquilo que lhe possibilitava mastigar e digerir seu miojo de fim de dia, de fim de tempo. Os bêbados, sob a sombra violenta do guarda-sol da senhora guerreira, caíram em debandada, praguejando ao céu e ao mundo porque velhas daquele jeito ainda perambulam por aí em vez de estarem enterradas em alguma vala pública. Enquanto isso, a polícia, a ambulância, um vereador, o dono do botequim, o borracheiro da esquina, todas surgem de repente, do nada, a fim de ajudar ou não se sabe mais o que, já que o sol torrava tanto, tão quente e desumano até para as cascavéis, que os miolos deixavam de funcionar...

Cristiano Covas
Enviado por Cristiano Covas em 05/10/2015
Reeditado em 05/10/2015
Código do texto: T5405215
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