Quintal de minha infância e adolescência

Gilberto Carvalho Pereira, Fortaleza, 31 de outubro de 2015

Nasci em São Paulo, no ano de 1944. Meus pais, cearenses, se mudaram para aquele estado, atendendo convite de um irmão, que já morava por lá. Pouco tempo depois eles retornaram para Fortaleza, por motivos que desconheço.

Segundo meus irmãos mais velhos, no ano de 1946, passei a morar na casa onde vivi minha infância e adolescência – até os dezoito anos de idade. Também não sei quando percebi minha capacidade de imaginar, querer e sentir, quando tive a infância redescoberta, e fui despertado para a realidade do mundo, que é dada pela experiência, deixando de ser apenas uma cria. São vagas as minhas lembranças desse período. As tenho perpetuadas em fotos raras, tiradas em passeios, aniversário familiar ou outra comemoração qualquer.

Acredito, entretanto, que resgatar da memória o passado encastelado na escuridão dos anos vividos, serve para desnudar a biografia de um ser em crescimento e revelar momentos de prazer, felicidade e bem-estar, esquecidos em área específica do córtex cerebral, compondo a memória declarativa, a memória de fatos e eventos.

Algumas dessas lembranças me vêm à memória quando já beirava os cinco anos. Morava na Rua Antônio Augusto, 1518, no bairro da Aldeota. Nessa época a Aldeota, antigo Outeiro, consolidava-se como bairro tipicamente residencial, com ruas largas, belos casarões e sobrados. Os terrenos eram enormes, davam para construir a casa, e sobrava espaço para o jardim, o quintal, o pomar. O bairro foi formado a partir da Avenida Santos Dumont. Somente a partir de 1950 é que ele passou a representar o bairro predileto da elite fortalezense.

Minha casa fazia parte de um conjunto de cinco casas conjuminadas, sem jardim e muro. A porta da frente se abria diretamente na linha da calçada. De frente ela media mais ou menos 4,5 metros, de profundidade, uns 25 metros, onde eram distribuídos 4 quartos, duas salas – visita e jantar –, copa, cozinha e banheiro. Havia uma área de luz e corredor de acesso para os quartos. Aí eu vivi feliz até os 18 anos, quando fui morar em São Paulo.

Para mim, criança, o que se destacava nesse “conjunto arquitetônico” era o quintal. O de minha casa media mais de quarenta metros de profundidade e seguia a mesma largura da casa. Lembro-me que inicialmente apenas uma débil cerca de madeira separava o meu espaço, do espaço dos quintais adjacentes, que o fazia parecer muito grande. Nele havia plantado dois pés de graviola (Annona muricata L. – Annonaceae), uma goiabeira, arbusto de pequeno porte, pertencente ao gênero Psidium, família Mitaceae, plantada pelo meu pai, que se orgulhava dessa façanha, os frutos eram brancos e grandes e de valor nutritivo acentuado. Possui quantidade razoável de sais minerais como cálcio e fósforo e seu teor de vitamina C é o dobro do contido no limão.

Eu ficava fascinado quando um novo fruto apontava na árvore. Eu o visitava todos os dias. Quando já amadurecendo, corria para avisar ao papai, que o protegia com um saco de papel, para livrá-lo de pragas e doenças. Quando maduros, cada filho tinha direito a uma parte daquela gostosura de goiaba. Só o meu pai podia colhê-las do pé. As crianças respeitavam essa vontade.

Uma touceira de bananeira, (Musa spp – Musaceae) um pé de seriguela (Spondias purpurea) outros arbustos, dos quais o nome não me recordo faziam parte de minha floresta encantada onde habitavam feras imagináveis, contra as quais eu lutava bravamente. Comparava-me ao Tarzan, o rei da floresta. Nos galhos das plantas eu pendurava pedaços de pano, representando os macacos e outros animais, no chão eu espalhava pedras, paus e galhos, eram animais ferozes. Quando terminava o dia eu escondia todos esses apetrechos, não queria ser alvo da gozação dos irmãos mais velhos Muitas vezes ficava horas e horas a brincar sozinho, enfrentando os perigos que a selva imaginária se me apresentava. Só entrava em casa quando a tarde começava a cair dando passagem para a noite subir. Eu tinha muito medo do escuro, de fantasmas, dos vultos que começavam a se esgueirar entre escondidos dos ramos e folhas da selva.

Às vezes eu não brincava sozinho, meus irmãos também faziam uso desse espaço que a maioria das crianças de hoje não possui. Como eram mais crescidos que eu, eram eles que comandavam as brincadeiras. Eu só os obedecia, geralmente em brincadeiras sem graça: futebol, pega-pega, bola de gude – depois de uma chuva, quando o terreno ficava duro e se podia demarcar a linha dos três buracos. Eu gostava mesmo era de fantasiar as minhas brincadeiras e pensar que tudo aquilo era verdade. O terreno chuvoso e pegajoso também permitia a construção de longas estradas, que invadiam a floresta, e contavam com pontes, curvas perigosas, rios, e chegam sempre a aldeias de tribos ferozes, que eram logo domesticadas por mim.

Havia também uma cacimba, não muito funda, compartilhada com o vizinho da direita, da qual era possível retirar água para consumo. A de minha casa era retirada com balde amarrado em uma corda. O vizinho utilizava-se de um cata-vento com quase dez metros de altura, para puxar a água para as suas necessidades e a canalizava para uma caixa-d’água suspensa do chão por quatro pés de madeira. Um tampo de madeira protegia a cacimba da entrada de animais e sujeira. Com a implementação da água encanada, a cacimba ficou sem serventia, virando alvo da brincadeira de todos os irmãos. Não tardou que ela ficasse completamente poluída. Naquela época não havia a consciência da preservação.

Alguns episódios ficaram marcantes em minha memória. O primeiro foi presenciar a morte de um enorme porco, o meu elefante de imaginação – dois metros de comprimento e uns 500 kg de peso, acho -, criado no quintal, para saciar a nossa fome por carne e vender o excedente. Com o lado não cortante de um machado, o seu José, deu um certeiro golpe bem na fronte do animal, que soltou um forte grunhido, colocou fim na vida de meu elefante de mentirinha. Fiquei muito triste, mas não podia dizer nada, era comida para a família. O duro foi presenciar o ritual seguinte. Com uma faca, minha mãe sangrou o barrão e recolheu o sangue em uma vasilha de alumínio. O corte mais cruel, para mim, foi na separação da cabeça, colocada em um balde e deixada ali, fiquei por muito tempo com o olhar fixo naquela cena, não entendia porque tudo aquilo era necessário, deprimente. Em seguida fez um corte longitudinal na barriga do animal e sacou, cuidadosamente, suas vísceras. Seriam usadas para fazer o sarrabulho – sarapatel de hoje – e eu ali, impassível, sem mexer um músculo sequer. Os grossos pelos do morto foram retirados com água fervente e raspagem com amolada faca; uma pele branca e sem vida ficou exposta. Minha mãe fazia isso com maestria, parecia que era o trabalho diário dela. Depois de tudo isso, o animal foi esquartejado, suas partes separadas, algumas vendidas para os vizinhos e as nossas foram para a nossa geladeira. Comemos carne de porco durante quase um mês. O animal era sadio, fora criado em casa, com restos de comida e frutas de casa e de casas vizinhas.

O segundo, foi a queda de minha irmã em um buraco aberto para receber os dejetos da fossa - câmara subterrânea, em que são despejados e acumulados dejetos de casas não servidas por rede de esgoto. Brincávamos, eu e ela, ao redor desse buraco, que tinha um dos lados escavado rente à cerca do vizinho. Já havíamos dado várias voltas, sempre se firmando na cerca, em pseudo segurança, eu sempre na frente, passo a passo, sempre com cuidado. Simone foi passar, se desequilibrou e caiu. Apavorado gritei para a mamãe, para que ela viesse socorrer minha irmã. O buraco estava cheio de dejetos, Simone se debatia, minha mãe chegou e não pensou duas vezes, se atirou, de roupa e tudo, agarrou a minha irmã e a jogou para fora do buraco. A moça que trabalhava em nossa casa também acorreu aos meus gritos e afastou Simone daquele local, voltou e pegou a mão de minha mãe, ajudando-a a subir. Eu só gritava e chorava, completamente apavorado, eu não queria perder minha irmãzinha e muito menos minha mãe. Os dias que se passaram foram de angústia para todos nós. Mamãe e Simone passavam por banhos com solução de creolina e outas soluções desinfetantes com propriedades antissépticas e germicidas. Vários litros de perfume foram comprados, para tirar o cheiro desagradável que ficou impregnado na pele delas.

O medo de as duas pegarem doença, infecção generalizada, assustava o meu pai. Eu não tinha noção do perigo, mas me incomodava muito aquela situação. Fora eu o culpado? Por que eu não segurara minha irmã, por que eu deixei ela cair? Estas questões me atormentavam e ninguém tinha as respostas. Só sei que a cada visita do médico eu me escondia, não queria saber das respostas dele. Os dias se passaram e nada aconteceu de grave. As duas não pegaram doença, minha mãe, depois que eu perguntei para ela, me assegurou que eu não fora o culpado e que nem poderia ter agido de outra maneira a não ser gritar por ela. Meu pai mandou aterrar o buraco e algum tempo depois os canos do esgoto chegaram à frente de minha casa. Nunca mais houve a necessidade de esgotar a fossa de casa.

Esses dois fatos me deixaram a certeza de que minha mãe era uma mulher de fibra, trabalhadora, corajosa, resoluta e, acima de tudo, mãe dedicada, pois criou oito filhos com amor e desprendimento, fazendo tudo para que tivéssemos vida digna e meios para vencer na vida.

Todo encantamento e prazer de minha infância e adolescência, passados no quintal de minha casa, foi se morrendo com o passar do tempo. Hoje, resgato com satisfação o que aqui acabo de escrever.

Gilberto Carvalho Pereira
Enviado por Gilberto Carvalho Pereira em 31/10/2015
Reeditado em 31/10/2015
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