O bode e a boneca

O bode e a boneca

Adélia passeou os olhos pela escrivaninha, vários portas retratos da família lá estavam, mas seus olhos pararam automaticamente numa moldura de madeira cuja foto era de um bode, um bode preto, com uma pequena mancha branca na testa, no pescoço uma fita vermelha de onde um sininho balançava.

Passou os dedos sonhadoramente pela foto, mas o que ela via não era bode e sim sua linda bonequinha de pano, que aquele bicho malvado comeu quando ainda era criança.

Durante anos esse foi o trauma de sua vida, quantas e quantas vezes sonhou com aquela cena do bode comendo sua melhor amiguinha.

Os anos passaram e a menina cresceu, virou mulher, casou, teve filhos e já era avó, mas persistia a dor da perda, mesmo após tantos anos.

Laurinha era o nome da boneca, foi paixão a primeira vista toda de pano com vestido chapéu e botinha numa estampa de flores minúsculas azuis e brancas.

A boneca era carregada o tempo todo, embaixo dos braços na bolsa da escola na cama, nos passeios, era sua sombra, amiga e carinhosa, ouvia e rebatia na imaginação da menina as criancices da infância.

Adélia chorou muito no dia que sua mãe enfiou a boneca de molho no sabão, encardida a coitadinha foi esfregada delicadamente, costurada e passada a ferro quente ficando nova de novo, mas que sofrimento para a pequena dona, que ficou sentada na grama enquanto a boneca secava ao sol.

Mongo, o bode oficialmente pertencia a Adélia, mas foi Alex seu irmão mais novo que lhe deu esse nome, o bode veio numa transação do pai com o outro sitiante vizinho deles, imediatamente as crianças se apaixonaram e o adotaram como bichinho de estimação.

Era ainda bebê e foi crescendo com as crianças apesar de ser vigiado o tempo inteiro pois vivia, comendo tudo o que via pela frente as roupas no varal, o chinelo da vovó, as almofadas da sala, até mesmo o rolo de fumo do papai o danado conseguiu engolir.

O bode tinha certa liberdade libertina, até o dia em que entrou na despensa da casa onde os mantimentos eram guardados para os meses de seca, praticamente o bicho comeu de tudo, ficando largado no chão até que a mãe o achou, o pai queria matá-lo de qualquer jeito, foi um dia cheio aquele. Adélia sorri as crianças tentaram esconder o bode, mas o traste com o pandu cheio como dizia minha vó não dava um passo, somente depois de muita choradeira o pai voltou atrás da decisão, mas manteve as ameaças de que da próxima vez não tinha perdão.

Assim passava os dias da menina, com a boneca embaixo do braço, brincando com seu irmão e seu bode. A boneca acompanhava quando era levada, e participava quando deixavam, senão ficava num canto esquecida durante horas, até a menina lembrar e trocar carinhos e segredos de novo.

Um dia onde todos os primos se encontraram, Adélia esqueceu Laurinha na varanda, sentadinha olhando a paisagem, foi ali que Mongo a viu e resolveu come-la, e o fez devagar com paciência, até mesmo carinhosamente, até que os gritos de Adélia chamou a atenção de todos, que correram pra tentar fazer o bode largar da boneca.

Mas a ultima visão que a menina teve, foi os dois pezinhos de Laurinha serem mastigados e engolidos, com um olhar de pouco caso do animal.

Adélia sofreu muito, teve febre, ficou de cama, e saia todas as manhas tentando achar o coco do bicho pra achar a bonequinha. Nada.

Porem tudo voltou ao normal, Adélia pegou um ódio mortal pelo bode, que foi afastado da casa, somente depois de vários anos, Adélia tornou a ver o bode, na sua velhice, mancando e doente, ela então o perdoou.

E mesmo hoje já velha, ainda uma pequena chama de magoa a leva-la ao passado. Será que sua vida seria diferente se ainda tivesse a querida boneca? Nunca saberia.

Laurinha sua amiga, lhe fazia falta, como um buraco vazio ou um ciclo que não se completou, beijou a foto sabendo que era bobagem. Mesmo assim acariciou novamente a foto do bode.

Luzia Rastelli.

Luzia Rastelli
Enviado por Luzia Rastelli em 27/06/2007
Código do texto: T543670