FIGURAS DE LINGUAGEM

Como já disse antes, ou melhor, como já escrevi antes, adoro escrever.

Reconheço que não foi a melhor frase ou descrição que já risquei na tela, mas traduz bem o que quis transmitir, apesar de demonstrar a pobreza de minha verve literária.

Ainda que contumaz escrevinhador, sempre travei uma árdua luta com a gramática, e só consegui me sentir menos derrotado, quando Veríssimo declarou enfrentar problemas bastante semelhantes. Se não posso vencer, ao menos tenho companheiros importantes na derrota.

Lembro de uma professora (Mariazinha) encantadora, que no primeiro dia de aula, antes mesmo de se apresentar, escreveu, em letras garrafais, na lousa, a palavra “CRASE”. Ainda que já tivéssemos tido contato com esse assunto, um branco generalizado tomou conta de toda a classe, e o silêncio pesou, até que um engraçadinho gritou, lá do fundo: - Isso morde?

Gargalhada geral e intermitente. Até a professora se rendeu à histeria inusitada.

Naquele ano, o tema principal foram as figuras de linguagem e construção.

Quem as estudou, sabe que são muitas e, em determinados casos, se interpenetram, causando confusão em mentes pouco afeitas à rigidez vernacular, como a minha. Tenho boa memória, mas então estava confuso e a decoreba funcionava mal, até que a mestra, com seu sorriso encantador, deu uma dica fantástica: - Associe cada figura aos acontecimentos.

Se nossa diferença de idade fosse menor que vinte anos, eu a pediria em casamento.

Fiz o que ela sugeriu, e fui mais além. Entremeei cada figura com casos escabrosos e insólitos, inventei, desconstruí e baguncei geral, mas consegui enxergar certo sentido no caos lingüístico que infestava minhas redações e as inevitáveis interpretações de texto.

Hoje sigo sendo gramaticalmente prejudicado (dizer burro é politicamente incorreto), mas consigo me virar e ensaiar algo menos cacográfico, sempre utilizando o sistema sugerido, que apresento a seguir, permeando assuntos atuais ou emblemáticos.

- Pouco recebi e muito paguei. Dizem que sou rico, mas me acho um pobre coitado.Injustiçado.

(exemplos de antítese e paradoxo monetário, num depoimento sobre propina)

- Eram só dez pacotes de dólares. O cheiro era tão doce, que me empolguei e embolsei.

(exemplos de catacrese e sinestesia financeira, na confissão de um poeta corrupto)

- A mentira queimava como fogo em minhas entranhas, mas com ela a vitória estava na mão.

(exemplo de comparação e metáfora politiqueiras, nas artimanhas eleitoreiras de um político)

- Subversivo a gente faz comer capim pela raiz e manda pro inferno, até antes de matar.

(exemplos de disfemismo e hipérbole, na fala mansa de um general, ao tempo da ditadura)

- Quem ler Darwin, considere-se excomungado, e se acostume às gargalhadas do inferno.

(exemplos de metonímia e prosopopéia, na condenação da Santa Sé à lei da evolução)

- Reconheço que faltamos com a verdade, mas será que os outros são santinhos?

(exemplos de eufemismo e ironia num discurso presidencial, buscando justificativas)

- Eu vi ela assinar, e sabia o que estava fazendo. Era a presidência chancelando a transação.

(exemplos de cacofonia e metonímia na descrição da venda nada lucrativa de uma refinaria)

Como devem ter percebido, meu domínio, mesmo que precário, dessas tais figuras, só é comparável à apreciação que tenho pelo insólito cotidiano, que infesta a administração deste belo país, desde o tempo da “revolução”. Na verdade, parafraseando um ex-barbudo, nunca houve antes neste país alguma seriedade administrativa ou legislativa. Chega a ser folclórico.

Lembro de um episódio, envolvendo um deputado, famoso em todo o território nacional, em que ao encontrar um eleitor, manda lembranças à sua mãe. O homem responde que sua mãe já morreu quinze anos antes, e o político, sem perder a linha, esbraveja:

- Morreu para você, filho ingrato, mas vive eternamente em meu coração!

(exemplo de cinismo, que é figura de linguagem a ser incorporada no besteirol pátrio)

nuno andrada
Enviado por nuno andrada em 04/11/2015
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