O bom enredo

O bom enredo






Acho que reside no, como se diz, no.....hummmm, na, quer dizer, na, na conduta. É isso. Proceder. Um amigo meu desceu na praça João Mendes e foi abordado por dois indivíduos. Pediram cigarros com outras intenções. Ele gentilmente cedeu. Se afastaram dizendo: você se safou porque teve proceder. No bom enredo alguém considera, ou mesmo capitula, e se der sorte, brada: Não! Eu não aceito isso! E se for preciso sacrificar, eu não diria a minha vida, minha vida tem valor, sei que, a julgar pelos fatos, parece pouco, a vida parece pouco, mas no enredo que almeja os cimos, alguém bateria o pé: Não! Chega! Não sei onde estava com a cabeça por assinar esse papel, abocanhar essa vantagem, participar dessa conspiração. No bom enredo alguém dá uma segunda chance a alguém. O bem vence o mal. O mal já encheu o saco. Você vira o interruptor, para poupar energia. Fecha a torneira, para economizar água. Preenche sua declaração e a entrega no prazo. Vota. Abaixa a cabeça. Descobre coisas além da podridão política. Espalha a boa nova aos amigos. Ah sim, amizade que termina nunca começou. O bom enredo quer palavras que construam e não apenas receber a côngrua. Há tempos perdi o enredo e desde então passei a colecionar coisas para serem colecionadas, mas não duram muito. O que eu senti, na primeira vez em que ouvi aquela música? Que fora feita pra mim, e que iria ouvi-la para sempre. Também coleciono teorias. O emprego das palavras certas depende do fato de se estar acordado para o emprego das palavras certas. Que apesar do acordo não depende de nada. Nem mesmo de serem de fato palavras, e muito menos de serem certas. Em algum momento elas deixam de ser. Hoje tenho uma cadeira de pano e afirmo a possibilidade de ver a vida confortavelmente, por alguns instantes, sentado numa cadeira de pano. E comendo pão. E escolhendo paulatinamente os pensamentos que são palavras, os que são imagens, os informes e os que se tornam ambos. Não saberia o que explicar, da última vez em que a vi. Disseram-me que ela não voltava. Lembro-me de ter franzido o cenho, à procura de alguma palavra. Coleciono ensinamentos rápidos, que chegaram para mim do nada, para o nada voltaram, não sem antes repassá-los, ainda que de modo inadequado. Disseram-me que teriam menos serventia ainda, caso assim não procedesse. O que senti a primeira vez em que a vi? Difícil classificar. Há tempos observo o enredo sem muito envolvimento, colocando apenas a ponta dos pés na água. É como assisitir de longe, sabe? E colecionar teorias. No bom enredo niguém diz nunca ao pé da letra. Paira um leve recuo, uma hesitação dissimulada, uma malandragem barata, uma frágil erudição. Assim o caminho pedregoso é percorrido com a graça do proceder que visa alternar meus batimentos cardíacos entre viver no tempo e viver no agora. Duas balelas misteriosas. Enfim, poderia ter colecionado enredos. Estaríamos de mãos dadas ao descerem as cortinas da nossa peça e eu pensaria em, como se diz, hummmm, em mim, não, em nós, sim, pensaria em nós e diria docemente que se tivesse que viver tudo de novo, seria bom se vocês estivessem ao meu lado.



(Imagem: William Nicholson, 1872 - 1949)
Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 07/11/2015
Reeditado em 06/07/2020
Código do texto: T5440775
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