Uma Sexta-Feira da Paixão

Vejo-me diante de um caderno, com algumas de suas páginas já usadas pelos meus confusos rascunhos, de quem ainda não me libertei e nada faço para que esta liberdade aconteça.

Buscar esta liberdade seria adquirir a habilidade de digitar os meus rabiscos diretamente no computador, mas os meus dedos não têm a mesma relação com o teclado como têm com o lápis, e, não é em vão que já escreveram tantos textos lindos sobre esse nosso amigo que em nossas mãos nos ajuda a conversar com nós mesmos e com nossos futuros leitores.

O lápis entre os dedos, a deslizar pelas linhas do meu velho e já surrado caderno, a mim me parece, buscar na profundidade da minha mente as palavras portadoras daquilo que desejo dizer.

Essa minha postura não significa que estou totalmente por fora da tecnologia. Já tenho alguns conhecimentos básicos que aos poucos vão me introduzindo no mundo virtual. Word, Orkut, MSN, Google e tantos outros que me oferecem oportunidade de registrar meus textos (após o rascunho – é claro), de reencontrar alguns amigos, de pesquisar um novo conhecimento, até mesmo ouvir uma boa música, com direito a uma seleção a meu gosto.

Mas... o que mesmo me fez chegar até aqui nesta página em branco do meu caderno? Qual era a minha intenção nesse momento? Escrever o quê? Sobre o quê? Nada do que você meu leitor acaba de ler.

O meu desejo era contar-lhe um episódio que há mais de ano trago na lembrança e um forte desejo de publicá-lo, de contar a alguém, de dividir com leitores sensíveis diante da vida.

Era uma Sexta-feira da paixão, dia em que todas as nossas lembranças de infância e de adolescência, parecem nos despertar para o significado da data, para aqueles que acreditam em um Deus, imagem do homem, que veio para redimir a humanidade.

Levantar mais cedo naquele dia para ir ao cruzeiro, visitar as madrinhas – que bons eram os presentes – preparar para jejuar, visitar os mortos, ir à igreja, acompanhar a via-sacra, o que, muitas vezes, fazíamos porque nos mandavam fazer, sem termos muita noção do significado de cada ato.

Valeu a pena. Hoje percebo que tudo aquilo me fez, mesmo depois de adulta, mais fervorosa, uma vez que continuei firme na minha fé e busquei explicação para todos aqueles ensinamentos dos meus pais, que viveram em época diferente, cultura e escolaridades diferentes, e por que não dizer, Igreja também diferente, mas cumpriram o seu papel na minha formação religiosa.

Há um ano, Sexta-feira da Paixão, em uma ida ao cemitério para visitar um ente querido, que Deus chamou para si, vieram à minha memória todas aquelas lembranças, diante da sepultura que visitava, e, ao olhar para o lado, percebi perto de uma pequena cruz, uma criança, dez anos aproximadamente, limpando, com muito carinho, uma sepultura com uma pequena laje.

Sentindo a sua tristeza, aproximei e mantivemos e seguinte diálogo:

_ Quem está sepultado aí, é parente seu? Irmão?

_ Não, é meu pai.

_ Por que tão pequena a laje da sepultura?

_ Ele morreu ni São Paulo e aqui só tá os osso. Foi depois de dois ano.

A vontade de continuar o diálogo não me faltou, porém que a hora não era apropriada, até mesmo por questão de ética, pois aquele olhar marcado pela dor da perda do pai tão cedo, me proibia de lhe fazer mais perguntas.

Reportei-me aos meus tempos de criança e às lembranças de tantas sextas-feiras da paixão. Recordei-me de muitas pessoas amigas, colegas, que de véspera combinávamos o programa do dia-seguinte, da sexta-feira e senti falta dos amigos, dos parentes daquela criança tão solitária, buscando a presença do seu pai que o deixou tão cedo. O cemitério estava cheio, cada um com sua história, com sua dor, o que era perceptível no olhar de todos eles.

Voltei para casa, agora não mais com as minhas lembranças que deram lugar para no momento para a história da “minha” criança do cemitério, de mais uma sexta-feira da paixão. Senti-me angustiada por não ter conhecido mais da sua história, por ser impedida de continuarmos o nosso diálogo, por não ter partilhado mais com ela aquele sentimento de vazio, de saudades.

Os dias foram passando e essa história continuou viva junto às minhas histórias de páscoa. Eis que chega mais uma sexta-feira da paixão. Um ano se passou. É o dia de visitar os nossos mortos. Estava eu ali de volta, nas minhas orações, ao terminar volvi meu olhar para aquela pequena laje onde sob ela, a sete metros de profundidade estão os ossos daquele pai. Para meu espanto, estava ali aquela criança, na mesma posição de um ano atrás. Prontamente me dirijo até ele na esperança de conhecer mais da sua história. Assim que aproximo dele, ele se levanta e me diz:

_ Tchau, meu pai adotivo está ali me esperando, já vou.

Esta criança já deve ter escrito mais um capítulo da sua vida. Capítulo que gostaria de escrever.

Daqui a um ano, quem sabe?

Diná Gomes Fernandes
Enviado por Diná Gomes Fernandes em 28/06/2007
Código do texto: T544251