Um louco sentimento chamado felicidade

Um louco sentimento chamado felicidade

Fatima Dannemann

Lembro de quando eu estive em Trancoso, no Sul da Bahia. Era um dia de sol, típico de verão. Depois de percorrer o povoado, parei no alto da falésia e contemplei o mar e o mundo que via lá do alto. De repente, abri os braços e gritei: “Lindo! Eu mereço> Valeu, Deus, obrigada! Eu mereço mesmo ver tudo isso”. Pedi ao fotógrafo que me beliscasse e comecei a dançar e cantar ali mesmo tentando me sentir como os velhos tupinambás que Cabral encontrou quando descobriu o Brasil aportando alguns quilômetros acima. Tudo muito lindo e eu cantando uma canção dos iroqueses americanos (ou tentando alguma coisa parecida com aquilo) agradecendo aos céus e pedindo bênçãos para os donos do jornal onde eu trabalhava. Ouvi do fotógrafo: “pirou, foi”.

Nada disso. Mas quem é ou está feliz vai sempre parecer louco justamente por enxergar o mundo como ele é, em ver a beleza até onde a beleza não existe. É como na velha música de Rita Lee, “mais louco é quem não é feliz”. Esse estado que parece insanidade, mas não é, acontece, senão indefinidamente, mas em muitos momentos da vida. E quando acontece, nada nos abala. É o que os budistas chamam nirvana. Um estado de ausência de sofrimento, de paz absoluta e profunda. Algo que é impossível ser traduzido em palavras.

Momentos como o que vivi em Trancoso acabam sendo perenizados através das lembranças e nos dão força para segurar a barra em ocasiões nem tão felizes. Força sim, pois é só lembrar que a vida é cíclica, que a todo momento estamos entre o sansara e o nirvana, e que tudo pode ser necessário, mas tudo passa um dia. Assim como a viagem para Trancoso acabou, sofrimentos também se esvaem, por mais que estes pareçam eternos quando estamos envolvidos nos problemas. Mas, dos bons momentos ficam as lembranças e as fotografias. E dos maus momentos... Bom, traumas podem ser curados, ainda bem.

Mas, se felicidade é loucura, andando pelo mundo encontrei gente ainda mais louca do que eu em Trancoso. Conheço um rapaz, por exemplo, que ganhava pouco, trabalhava demais e um belo dia descobriu que tinha um vírus, tipo o da AIDS, mas que deixa a pessoa inválida. Precisou se aposentar e ganha uma merreca. Mas nunca deixou de estampar um sorriso, de ser gentil com as pessoas e nunca se queixou. Pelo contrário. Diz que tem certeza que um dia vai ficar bom (os médicos dizem que não) e que se não ficar bom, ele vai trabalhar até quando agüentar “e tentar fazer um pé de meia”. Nem a mulher ter largado ele tirou o bom humor. “Eu arrumo outra”.

Quem duvida que gente pobre, pobre de marre, marre, marre pode ser feliz, viaje comigo e eu levo, não só a Trancoso, claro, mas a lugares tipo onde Judas perdeu as botas. Num desses lugares, Lage dos Negros, no norte da Bahia, não havia luz, água encanada, o lugar é considerado barra pesada por causa do tráfico de droga e ao ver carro esquisito, pessoas de bem da região se trancam dentro de casa, pois ou é a polícia ou são os bandidos. Mas, nesse “buraco”, encontrei um velhinho super de bem com a vida. Tomamos algumas cervejas e o velho contou que não sentia falta de água ou luz ou qualquer outro conforto “civilizado”. “Não sei pra que? Tenho o mundão de Deus, a luz das estrelas, a água do rio, a comida que eu mesmo planto e o resto pego aqui no armazém. Quando tenho dinheiro pago, quando não tenho compro fiado e assim vou levando”.

Ir levando... As pessoas felizes, porem menos loucas do que eu em Trancoso, parecem usar o ir levando como filosofia de via. Como Cazuza dizia, “dias sim, dias não”. Nos dias felizes, rimos, nos dias tristes, choramos e quando estamos de novo felizes rimos de ter chorado “por tão pouco”. A felicidade é um estado de graça tal que permite nos ver a vida sem stress, sem expectativa, ver tudo como é e ter cabeça fria para resolver os problemas que, quando nos envolvemos demais com o sofrimento, não conseguimos esperar.

Tal estado faz com que os felizes pareçam loucos embora eles sejam mais lúcidos do que quem não está tão feliz ou quem não se permite ser feliz (tem muito disso. Repressões, comportamentos sociais padronizados e outras balelas mais). Criou-se uma idéia errônea de que quem sofre, padece, quem traz uma história de vida cheia de mancadas do destino é “melhor” do que quem está feliz. Não é bem assim. O sofrimento em excesso, a dor incurada, pode endurecer o coração das pessoas e revelar seus piores instintos. Ser feliz não é pecado. Nem é loucura. E melhor que tudo: é perfeitamente possível e está ao alcance de todos os seres humanos de forma indistinta.

Maria de Fatima Dannemann
Enviado por Maria de Fatima Dannemann em 28/09/2005
Código do texto: T54688