O Intelectual na Farmácia

Farncisco era dono de uma dessas farmácias de interior, e quem passava por ali com pressa nem dizia do que se tratava. Vidros coloridos, misturados com ervas e remédios de laboratório. Os mais antigos diziam que ali já tinha sido um armazém, depois um botequim e agora essa farmácia que mais parecia um antigo botequim e um antigo armazém. Eram negócios de seu pai e, com seu falecimento, se desfez de quase tudo, porém manteve as garrafadas, as peças de umbanda e toda a sorte de miudezas que incentivavam a reza e o curandeirismo da religião na região. Ah, e antes que me crucifiquem pela troca de letras no nome do coitado, já vou logo me justificando, o Pai pediu ao amigo que escrevesse Francisco em um pedaço de papel para ir ao cartório, pois pouco sabia escrever. O danado do amigo, no auge da pinga, trocou as letras e escreveu errado, o tabelião, que também já tinha bebido mais cedo com eles, leu o bilhete errado de forma certa e lavrou o nome errado também como certo. Se não foi isso foi o contrário, mas o nome de Francisco até pegaria se Farncisco não fizesse questão de se chamar Farncisco mesmo, criando até caso com quem te chamava errado, ou certo. Sei lá!

Uma vez por outra Farncisco aplicava com jeito uma injeção, e as bocas miúdas diziam que ele já tinha visto mais bundas que qualquer um de lá e que se uma mocinha aparecesse, meio de lado, se queixando com dor aqui ou ali, ele mesmo furava as nádegas e, como se não bastasse, mandava voltar no outro dia para fazer curativo, já as velhotas, os homens e outros sem sorte ele receitava pomada, unguento, reza, ou qualquer outro artifício, desde que não demorasse muito em seu estabelecimento.

Fazia um ar de doutor: óculos na ponta do nariz e caretas, para decifrar as receitas quando estas viam de um médico de verdade. Uns acreditavam que era semianalfabeto, outros tinham plena certeza, mas o que fazer? Pior sem ele. Ele mesmo que nem se poupava em riscar o que não entendia e acrescentar o que bem queria nos receituários. E o preço? Bem, o preço era de acordo com a cara do freguês, o nome do remédio ou qualquer outra variação de temperatura ou humor deste ou daquele. Quando o cometa Halley passou, lá pelos idos de 1985, ele dobrou os preços de tudo por quase duas semanas.

Um dia, um homem com trajes finos e bigode de ponta - e com pontas - apareceu por lá saído de um lindo carro preto brilhante que para te dizer a verdade, só me lembro da cor, pois nunca vi um carro igual por aquelas bandas. Lustroso, elegante...

- Quem, o homem ou o carro? Os dois!

O carro parou com um enorme som de freada, levantando um pouco da poeira vermelha da estrada. De dentro saiu um homem com semblante bem nervoso.

Era uma imagem que pairava entre a figura do Johnnie Walker e o figurino de Charlie Chaplin.

Apontou para o dono da farmácia com a ponta da bengala, como se quisesse distância e perguntou: botica? Já mudando a direção da bengala para dentro da loja. Ele a balançava como quem quisesse parar um trem de carga no braço.

Farncisco coçou a cabeça, olhos por cima dos óculos, percebia que o engravatado suava bastante e parecia incomodado com alguma coisa.

- Necessito de beberagem para minhas vísceras – falou alto, mexendo apenas o bigode

- hein?

- Minhas entranhas entrarão em vomição e o bolçado não terá olência aprazente. Estão desregrados, vou enodoar a indumentária – completou com certa fúria.

Apesar do aparente desespero do visitante, o dono da farmácia se manteve calmo, já tinha ouvido muitos nomes de remédios e esses eram novos, mas como o bigodudo parecia ser da capital, tratou de ser natural o máximo que pode, afinal, não era porque morava no interior que faria feio... O Doutor é estrangeiro?

- Meu caro, longe de ser omnissapiente ou douto. Apenas um erudito, deveras letrado, que por essas sendas paira na humilde intenção de reverter minha disfunção. Ah, sou brasílico.

Farncisco observou que quanto mais o cara falava, menos ele entendia, e olha que ele já tinha escutado de quase tudo. Todo tipo de nome estranho...

- Pelo amor de quem te guia e guarda... Um unguento... Um bálsamo para minha algia. Preciso auferir meu recobramento o quanto antes. Seja lépido e lesto. Pelo crucificado, seja célere! Expedito, expedito!

Quanto mais ele falava, mas descabelado ia ficando, o chapéu já tinha caído da cabeça e os olhos esbugalhados estavam envesgando. Seu corpo entortava para um lado só e sua voz afinava em alguns momentos, tal qual uma criança cantando.

O farmacêutico sorriu e levantou com calma - sim ele estava sentado até agora. Voltou com uma imagem de barro de Santo Expedito, um crucifixo de madeira e uma guia que ele jurava que tinha sido benzido algum terreiro da Bahia. Aproveitou para pegar os maiores da loja, já que era pra turista. Esticou os objetos para o homem com um sorriso entre as bochechas e completou:

- São duzentos reais, a oração está presa no fundo do santo, com a guia cruzada funciona mais rápido - Fez por duzentos para não ter que ceder troco.

O intelectual bateu com a mão na testa e deixou-a escorrer bem devagar na face olhando para cima, em uma expressão clara de quem não aguentava mais. Deixou a bengala cair no chão, colocou as imagens com a calma que pode no balcão, olhou fixamente nos olhos de Farncisco a menos de meio metro, segurou ao mesmo tempo as duas mãos dele e proferiu:

- Moçoilo, que Deus abendiçoe sua incultura intrínseca. Abdico-me. Abstenho-me de aclarar seu juízo. Sucumbo-me. Aqui jaz minha vontade de me fazer compreender. Renuncio! Falou tudo isso com enormes gotas de suor em sua testa e aos gritos de um louco desesperado.

Virou-se de costas e seguiu mancando, correndo, torto, em direção ao carro, gritando, gesticulando coisas inaudíveis e indecifráveis, deixando para trás uma bengala e um chapéu.

Foi nesse exato momento que Farncisco percebeu o erro. O cara só queria um calmante... Ele estava nervoso. Ele nunca tinha visto ninguém nervoso daquele jeito.

O farmacêutico assobiou e no que o homem virou o rosto ele deu um sorriso de braços abertos, como quem dizia com os mesmos braços: matei a xarada.

O intelectual levantou as duas mãos para o céu, como quem diz: até que enfim.

- Tome, esta garrafada vai de acalmar. Não beba muito, pois ela é muito forte.

- Muito agradecido! Enfim vou acalmar minhas entranhas e emudecer minhas onomatopeias intestinais...

E antes que o dono da farmácia pudesse impedir, o forasteiro bebeu aos goles, desesperado, todo o conteúdo de mais de um litro do calmante caseiro. Parou por uns segundos para limpar com o antebraço o bigode - como os piratas bebem nos filmes - para depois sorver os últimos goles, com um pouco mais de calma. Com uma enorme gratidão, colocou uma nota de cem reais no bolso de Farncisco, sorriu, e disse:

- Guarde para si os tostões do troco. Pegou o chapéu e a bengala com a mesma mão e foi cantarolando para o carro. Partiu feliz.

- Minha Nossa Senhora, nunca vi ninguém beber tanto calmante de uma vez só – pensou.

Tem doido pra tudo. Beijou a nota, olhou contra a luz para atestar que não era falsa, dobrou e guardou como um tesouro na gaveta do caixa. Sentou-se na cadeira. Ganhou o dia.

Vinte e cinco minutos depois, o mesmo carro para bem devagar em frente a farmácia. De dentro saem dois homens. Já não existe mais nervosismo ou gritaria. Um era o intelectual de antes e o outro, era bem possível que também fosse, pois suas roupas faziam um belo par com as dele. O intelectual novo amparava o intelectual antigo. Ajudou a descer do carro com carinho e cuidado, e este dava passos curtos com a serenidade de um monge e a delicadeza de um homem santo.

Os dois chegaram à porta da farmácia e nem de longe aquela figura calma e serena fazia lembrar o homem que esbravejava outrora.

- Boa tarde meu bom homem.

- Boa tarde!

- Meu amigo veio aqui, a pouco tempo atrás, buscando um remédio para sua diarreia, e o senhor ofereceu um calmante? Foi isso?

O intelectual que fora vítima de Farncisco estava sereno e as mãos estavam juntas como em oração e olhava para cima, como quem via passarinhos coloridos e arco-íris. Cabia até uma auréola.

- Pensei que quisesse calmante, ele gritava sem parar... Descontrolado.

- Sua inexatidão fez minha excreção manar pelos meus cambitos... Disse o agora calmíssimo letrado.

- Coimbra, agora chega! Já te disse um milhão de vezes! Linguagem coloquial pombas! Ninguém entende o que você diz... Vai Coimbra, fala normal, o rapaz não entendeu nada.

Coimbra sorriu, inclinou delicadamente a cabeça em direção ao farmacêutico sem mexer o corpo e proferiu em palavras miúdas, com uma feição quase de Monalisa:

- Meu amigo, vou te contar uma coisa, eu estou todo cagado, mas eu estou sentindo uma paz... Mas uma paz... Paz que eu nunca senti na vida. Esticou o braço magro e entortou a mãozinha como um padre que espere que lhe beijem o anel: Coimbra ao seu dispor. Qual seu nome?

- Farncisco, também ao seu inteiro dispor...

- “Far” o que?

- Farncisco ao seu dispor.

Coimbra olhou com graça de pomba branca para o amigo e perguntou sussurrando: o que foi que ele disse?

- Sei lá Coimbra, vamos embora. Entraram no carro e partiram sob a nuvem vermelha da estrada.

Dizem que depois daquele dia, além do caderno de receitas e do livro de medicamentos, o farmacêutico Farncisco também guarda, só por garantia, um pequeno dicionário ilustrado, para usar em casos especiais.