Outubro ou Nada!

Dizem que subi as escadas como quem subia o calvário. Quase como quem perdia a guerra. Com os pés arrastando, abri a porta da classe. Que classe, sem classe! Perdoem-me o trocadilho, não teria outro que encaixasse.

A visão não era nem um pouco animadora, mais de quarenta alunos falando ao mesmo tempo. Falas que não se entendiam. Eu ali, como um guarda de trânsito, parando uns, enquanto outros passavam direto sem se importar tanto com meus gestos e suspiros.

Ser professor era, tirando esses poucos, uma profissão que me deixava feliz e antes que peque pela contradição me explico: àquela época minha visão mais pura de felicidade incluía buscar algo que ainda não tinha, e assim, buscava na soma do que me sobrava, algo que sustentasse meus anseios mais profundos. Buscava ser feliz lecionando.

Em um desses dias entrei como de costume na sala de aula e fui de pronto presenteado com a algazarra costumeira. Abanei o ar como quem pouco se importava e me sentei olhando a linha do horizonte, que nada mais era do que um mural com trabalhos quase vazios, melhor: trabalhos incipientes de alunos insipientes.

No alto do calvário, minha cruz era ensinar história. Amo história, mas ensiná-la... Bem, isso já era outra história. Um aqui e outro ali até entendia alguma coisa, mas logo após, um cá outro lá chamavam tanto a atenção que em pouco tempo eu me transformava naqueles pastores de estação de trem, falando coisas importantes, mas que não possuíam tanta importância naquele momento.

Foi nesse clima, entre desafios e mesmices, que o fato que narro aconteceu.

Era algum dia do mês de outubro e estava chegando ao e fim de umas dessas aulas molhadas de tédio e história e uma aluna chamada Carolina se levantou do fundo da sala com o olhar fixo aos meus.

Neste exato momento tudo parou, congelou...

Não ouvia as gritarias e só fixava meus olhos naquele olhar.

- Professor – perguntou ela: O que é vida...?

Neste exato momento o sinal soou o que me fez despertar. Percebi que seus lábios ainda se mexiam, mas nada escutava. O que me importava? Nada!

Fiquei com a cena na cabeça e voltei pra casa confabulando comigo mesmo.

- O que é vida?

- O que é vida...?

- Quem diria Carolina?

- Logo você me fazendo perguntas filosóficas?

- Fazia menos de você.

Carolina era uma aluna de rendimento baixo para mediano, porém o que se perdia em rendimento escolar se ganhava em beleza e apesar das companhias e gostos duvidosos, tinha certo charme e que, se não beirava a malícia, ao menos deixava bem longe a vontade de não querer ficar bem perto.

Cheguei em casa ainda pensativo. Buscava saber qual era a melhor resposta para aquele que já estava considerando o maior enigma... A melhor pergunta dos últimos dias naquela escola. A pergunta mais inteligente! Senti sarcasmo e não vi piedade em seu olhar, logo era um desafio. Logo eu, que tanto desafiava a turma com meu monólogo insosso e incolor, naquele dia seria a minha vez de ser a vítima de meus próprios joguinhos impopulares.

Se bem me lembrava de meus cadernos de biologia, vida é o período que corresponde entre o nascimento e morte, algo comum entre os organismos organizados,claro, ,coisas vivas, mas se fosse rebuscar nas minhas anotações de filosofia, a vida poderia ser existência ou participação. Vida útil? Período fértil? Sei lá!

Sentei na cama, depois deitei. Percebi que ainda esteva de calças e meias.

Pensei mas um pouco e um flash me passou pela cabeça.

Pulei da cama e gritei um “eureca!” cheio de veias proeminentes no pescoço.

- Só podia ser isso! Carolina, sua pergunta é um sinal...

Suava e meus olhos arregalados não me ajudavam muito meus braços a tatear as paredes.

- Carolina, agora eu entendo...

Abri o guarda-roupa e passei a mexer em coisas antigas, mas precisamente nos objetos de minha militância, quando era bem mais jovem. Meu macacão verde oliva estava quase perfeito, porém minha boina bordô tinha sofrido um tanto com a ação do tempo e com os furinhos das traças.

Quando eu estava na faculdade fui um dos fundadores do grupo Outubro ou nada!, assim mesmo com ponto de exclamação no final.

Não queríamos nada em especial, apenas nossa liberdade e felicidade, como se isso já não fosse conquistado com muita luta e sofrimento em plena ditadura, precisávamos sempre nos reunir para defender essas nossas ideias. O nome foi escolhido em homenagem ao confronto entre os estudantes da USP, de esquerda, e os do Mackenzie, que se dizia caçar comunistas.

Outubro ou nada! Esse era o nosso grito de ordem. Não era muito criativo, mas era, pelo menos, desafiador.

Dentre os nossos assuntos de pauta, praticávamos as nossas divagações com perguntas sem respostas óbvias, tais qual a que fez Carolina, e isso só podia ser uma mensagem. Será que ela conhecia o movimento? A mãe dela? Até que seu rosto angelical não me era incomum. Meu Deus! Por que não pensei nisso antes? Eis o movimento retornando. Finalmente.

O que é vida? Pergunta típica com nossa formação histórica que nem requer resposta.

Carolina apenas queria contar em casa que teve um contato com alguém do movimento para alimentar a alegria nostálgica de seus familiares e isso era ótimo e animador. Era tudo perfeito e esclarecedor. Não precisava de tanto mistério, em tempos globalizados bem que eles poderiam usar as redes sociais ou me enviar um SMS, mas não, quiseram o caminho mais tortuoso e misterioso. Este caminho é o único conhecido pelo nosso, agora vivaz, Outubro ou nada!

Fiz um bule de café, pois sabia que não dormiria naquela noite, mesmo porque Carolina deveria ter pressa e estar ansiosa pela resposta de sua pergunta certeira.

Falava no espelho, quase cantarolando: O que é vida Carolina? "Talvez a vida seja aquela jornada que vamos trilhar em tempos onde os nossos movimentos e expressões culturais não sejam reprimidos. Não por uma sociedade que se diz democrática, laica e garantidora de direitos, mas que cerceia e que põe regras, que nos limitam em nossas próprias raízes de expressões mais profundas. Ou então: Vida Carolina? Vida é apenas a ausência da morte"- Falava alto!

Vivi acordado entre meus devaneios e sonhos até que, de fato, amanheceu o grande dia. Com muito custo vesti meu macacão antigo sobre minha barriga teimosa e, na falta de alguns botões e na insistência da minha pança em permanecer a mostra, decidi colocar uma camisa verde de fundo, assim como coturnos tão pretos quanto as minhas olheiras. Ajeitei a boina bordô, e ensaiei algumas réplicas e tréplicas para Carolina, que só usaria caso o poder de persuasão dela tentasse me embutir ideias discordantes da raiz natural de nosso movimento. Talvez ela quisesse meu apoio para a reforma de nosso estatuto principal, aceitaria algumas mudanças, mas brigaria por manter algumas ideias centrais, afinal, aceitaria a entrada do fôlego juvenil na medida em que eles aceitassem a permanência do meu conservadorismo reformatório. No nome ninguém mexe!

Cheguei à escola e subi as escadas com vigor. Batia minhas botas tão fortes nos degraus que um silêncio se fazia atrás de mim, quase marchava. Percebia o furor e cochicho de todos e isso me arrepiava ainda mais. Quase fiquei com vontade de chutar a porta daquela classe naquele dia e apresentar uma entrada triunfal, mas apenas entrei com a mesma obstinação pela qual subia os lances de escada.

A turma toda ficou muda, todos me olharam ao mesmo tempo. Já estava acostumado com essas comoções públicas e não amoleci. Cerrei meu punho e coloquei meu braço direito esticado em uma posição de quarenta e cinco graus. Era a nossa saudação. Era algo entre a saudação nazista e a dos Panteras Negras. Neste exato momento Carolina se levantou e caminhou com graça em minha direção. Confesso que tremi um pouco, mas precisei manter a postura, pois sabia que tudo que faria estaria sendo medido em detalhes por ela.

Quando ela estava a uns três metros de mim soltei nosso grito:

- OUTUBRO OU NADA!!!

Foi um grito surdo! Ficando assim alguns segundos de olhos fechados, mais pela emoção do que pela necessidade e quando abri, percebi e ela me olhava atenta e com ar de curiosa, eu não esperava menos.

Seus lábios se mexeram com calma.

- Gostei da fantasia. Vai ter pessa? Por favor, mantenham peça com dois esses. Hoje tenho certeza que seria assim que ela escreveria.

- Como eu te preguntei ontem: o que é Vida Loka? Tirei um u. Deixei um k, pois também tenho certeza que foi assim que ela disse.

E antes que eu falasse qualquer coisa...

- Sabe o que é professor? É que eu acho que estou grávida do Marcelinho do terceiro ano, e quando contei, ele sorriu e disse assim: “Carol, fica ligada na parada, que eu sou vida loka. Tamo junto”

- E ai professor?

- O que é vida loka? Fiquei curiosa.

Com calma abaixei meu braço e falei quase entre os dentes.

- Vida loka Carolina?

- Sim professor vida loka...

- Vida loka?

- Sim, vida loka.

- Vida loka Carolina?

- Sim

- Vida loka é essa que seus professores devem levar...

Tirei minha boina da cabeça, virei-me de costas e comecei a escrever com giz no quadro negro algo sobre alguma coisa de nossa história que foi esquecido por todos e cobrado nas provas de final de ano.