FANTASMAS DO TEMPO

A passagem dos dias ruiu o teto do ermo casarão. Intempéries agrediram a mobília. Trajes despejados do guarda-roupa foram parar às margens do lago distante. Brochuras e páginas dos livros, conduzidas por enxurradas, foram-se ao longe, ganharam asas ao vento.

Muito depois, o prédio e o mobiliário foram restaurados. Janelas ganharam vidros reluzentes. O vasto mundo da biblioteca, desta vez, acolheu não mais que fragmentos da mitologia, dos romances, das ciências e da filosofia.

Imagens e referências dos antigos moradores não foram encontradas. Distintivos, quadros, insígnias, bandeiras e escudos foram dispensados ao largo dos acontecimentos. Sem representações biográficas, tudo voltou ao possível. Mestre da ordem do silêncio, o tempo se vai a entalhar caminhos para outros mundos.

Em sequência, os curadores do casarão também passaram. Pouco a pouco foram-se vozes, dramas, lembranças e significados culturais. O prédio, definitivamente, retornou ao abandono.

Desde então, copos, pratos e talheres, distribuídos cerimonialmente, permanecem intocados sobre o linho açafroado que cobre a mesa de jantar. A inércia absoluta é guarnecida por cadeiras reverentes e empoeiradas.

O sol e suas nuances diárias, estações do ano, paisagens noturnas e tempestades ocasionais desfilam incompreendidos pelas vidraças. Carece a percepção e o enaltecimento humano para formular a estética dos empenhos naturais.

Estimulados por astros que miram o vão das janelas, cristais emitem frações que se refletem no espelho - espécie de tela pulsante por onde reluz a prata, o amarelo clandestino e os tons furtivos do azul.

Nos dias atuais, apenas os sons gerados pelas variações térmicas habitam a casa deserta, que inacreditavelmente não se submete a qualquer ocupação humana.

Ensimesmado e sob reiterados golpes da indiferença, o prédio abriga a reflexão do isolamento. Móveis e utensílios perdem o significado.

Neste instante, mais uma de suas janelas deixa o prumo. Impiedoso e progressivo será o esfarinhar da mobília.

É possível, apesar do abandono, intuir mágoas e alegrias que por lá um dia se hospedaram. O sensório, ainda que tratado pelo afastamento, não desalma de todo as impressões que permanecem vivas.

Por isso, nas noites de ar agitado e lua cheia, a curiosidade das pessoas, mesmo ao longe, é tangida pela música vinda da antiga casa. Os que se detém ante a estrutura que sobrevive ao rigor das estações, podem distinguir, em meio ao burburinho e o som dos cristais, vultos de uma outra época encorajados pelas cortinas do vento que percorre a sala.