Gato preto

 

 

Temos aqui um gato preto de butuca no cronista. Vindo da rua (de onde mais?), ele acaba de trepar e sentar-se no peitoril da janela do meu quarto, olhos fitos em mim, numa impassibilidade de guardião antigolêmico. Não, não tenho coragem de enxotá-lo. O fato de ter aparecido à meia-noite em ponto tem lá o seu mistério, e não sou eu quem vai negligenciar um sinal tão claro de algo ainda obscuro, é verdade, mas sem dúvida alguma instigante. Corro deliberadamente o risco de ser tachado de supersticioso, embora devamos convir que os nossos felinos domésticos não usam relógio (para se conformarem assim, por puro deboche ou auto-recreação, ao folclore em torno deles) e que essa pontualidade mágica exclusiva dos gatos pretos — de alguns gatos pretos, corrige o rabino Loeb, um cabalista e tanto — não pode ser mera coincidência. Além do maharal de Praga, dizem as bruxas pós-modernas que uma ocorrência dessas em hora tão simbólica configura, necessariamente, um recado do mundo astral. Recado e advertência, acrescentam, sem no entanto provarem de forma peremptória que tais mundos existem. Não sinto medo. Não sinto medo, mas experimento uma grande aflição com a imobilidade dele, só essas duas bolas de gude verde-água contemplando sem desassossego o menor dos meus gestos. Não lhes contei sobre a visão que ele tem de mim. Estou sentado à mesa de trabalho, de frente para a janela, folheando a imensa edição francesa da Recherche em apenas um volume, texto integral. Há pouco, tomado de súbita inspiração, tentei jogar o siso com o malandro a fim de intimidá-lo. Capitu ganhava todas de Bentinho nesse jogo, mas duvido muito que aqueles olhos de cigana, com toda a sua obliqüidade e dissimulação, dobrassem este gato. Eu mesmo fui vergonhosamente vencido no primeiro minuto, e por muito pouco não perdia a consciência, tal a confusão de idéias e sentimentos que se instalou dentro de mim depois de o ter encarado de maneira tão acintosa. Estou quase certo de que esses putos nos hipnotizam numa fração de segundo e lêem a alma da gente. Lêem, e guardam para si a péssima opinião que devem formar sobre os humanos. Não pode ser outro o motivo do profundo tédio que parecem sentir diante da afobação com que tocamos o dia-a-dia. Levanto-me um instante, finjo buscar alguma coisa no closet e volto-me de repente em sua direção, cheio de intimidade: “E aí, meu chapa, boas novas?” Nada. Não dá um pio, se é que me entendem. Que papel mais ridículo na frente de um gato de condomínio baixa-renda! Bem, meia-noite e sete agora. Sou salvo pela gata amarela de uma vizinha de prédio. Passou toda dengosa há pouco pela calçada, miando de paixão, e o meu suposto mensageiro dos deuses não pensou duas vezes. Dirigiu-me ainda um último olhar, cheio de enfado, e se mandou.

 

[4.7.2007]