Agitações da década de 1960
 
Luiz Carlos Pais
 
Para entender o clima das agitações militares de 1964 é preciso articular eventos locais ao panorama político mais amplo do país. O desafio consiste em relacionar o nebuloso contexto das tramas locais às principais questões que de certa forma ditaram os rumos da política nacional. Por incrível que parecer, brigas de paróquia, rusgas entre caciques políticos ou acerto de contas infantis podem permear motivos nada republicanos que levaram à prisão de alguns paraisenses. No núcleo da trama há muito mais do que motivação política ou ideológica. Devido as suas convicções, eles faziam oposição aos rumos ditados pelos governos militares. Eles apenas tinham ideias contrárias aos que apoiaram a deposição do presidente João Goulart e a implantação da Ditadura Militar. Os mais exaltados defendiam as reformas de base anunciadas pelo presidente Jango, durante o comício realizado no dia 13 de março de 1964, reunindo meio milhão de pessoas no Rio de Janeiro. Em reação a esse comício, os setores conservadores iniciaram uma série de manifestações, as chamadas “Marchas da Família com Deus para a Liberdade.” A população paraisense presenciou uma dessas manifestações nas ruas cidade sob a liderança do padre Mancini.

Mais do que tentar entender a trama política protagonizada pelos redutos mais radicais da esquerda e pelos conservadores, o objetivo deste texto é destacar traços da trajetória dos paraisenses cujos nomes estão, hoje, registrados em vários documentos de valor histórico para o país. Da nossa parte, não se trata de defender qualquer bandeira ideológica seja qual for a sua coloração. Também não podemos incorrer no equívoco de avalizar qualquer tentativa de julgar decisões que não pertencem ao nosso tempo. Por certo, o desafio maior consiste em entender o contexto da época e articular o passado aos problemas atuais. Onze dos quinze detidos responderam a inquéritos, após a liberdade provisória obtida com a custódia assinada pelo Deputado Delson Scarano. Mesmo sem compartilhar da ideologia de seus conterrâneos detidos, a visão humanista do político falou mais alto do que qualquer pequena diferença partidária, pois sua postura democrática não estava aliada à velha oligarquia local.

Alguns dos paraisenses presos eram comunistas e tinham seus nomes fichados nos arquivos do DOPS. Outros eram vinculados ao PTB, legenda a qual pertencia o presidente Goulart. Enquanto outros eram simpatizantes das reformas sociais propagadas pelos discursos do governador Brizola. Como ficou comprovado nos inquéritos nenhum deles cometeu crime contra a segurança nacional e nem mesmo havia infringido qualquer legislação reguladora da ordem púbica e social.

Havia uma grande distância entre as questões universais tratadas nos gabinetes e nos quarteis que comandaram a implantação do regime militar e a realidade local do grupo de cidadãos paraisenses que jamais ofereceu qualquer risco à ordem pública nacional. Em vista desse desencontro entre a realidade dos fatos e os exageros cometidos no contexto dos eventos de 1964, o desafio consiste em relacionar tudo o que possa ser relacionado para entender quais, de fato, as questões fundamentais da história, destacando episódios que ocorreram em outros daqueles que possam ter ocorrido somente no quadro das disputas ou querelas locais, que muitas vezes enveredaram pelos caminhos dos exageros e dos equívocos. A prisão dos paraisenses resultou de denúncia enviada a um dos generais que comandou o golpe militar.

O agravante da denúncia feita contra os paraisenses decorreu da menção da existência de armas as quais estariam sendo, supostamente, estocadas pelo grupo para apoiar um possível movimento revolucionário. No contexto dos eventos de 1964, houve centenas de outras denúncias em várias cidades contra comunistas, trabalhistas e outras frentes que apoiavam o presidente Goulart. Com a abertura dos arquivos do DOPS, essas denúncias passaram a ser de domínio público.
O início da década de 1960 foi um momento marcante na história política do país. O presidente Jânio Quadros que foi eleito com uma expressiva votação popular tomou posse no dia 31 de janeiro de 1961. Para chegar ao poder ele contou com o apoio da UDN, pois pertencia ao Partido Democrático Cristão. Mas, mesmo tendo recebido uma expressiva votação, não conseguiu eleger o seu vice. Na época as eleições para presidente e vice não estavam atreladas em uma mesma chapa.

O vice-presidente eleito foi João Goulart. Fazia um mês que o Jânio estava na presidência, quando o general Golbery assumiu o comando do Conselho Nacional de Segurança, órgão que teria um papel central no serviço de inteligência dos governos militares. Dias depois, Ernesto Geisel foi promovido ao posto de general e assumiu o comando de tropas em um quartel estratégico de Brasília. Concomitante a esses acontecimentos e aliado às forças políticas da esquerda, e deputado pernambucano Francisco Julião, líder das Ligas Camponesas, viajou a Cuba, onde foi buscar apoio para plantar das bases populares da reforma agrária.

Essas variáveis convergiram nos acontecimentos de 1964. Os eventos esboçam o clima de tensão política que estava sendo criado naquele momento. Depois de sete meses no poder, em agosto de 1961, o presidente Jânio renuncia e os ministros militares não aceitaram a posse do Vice-Presidente eleito João Goulart. Ocorreu uma divisão interna no Exército. Elio Gaspari mostra que militares do Rio Grande do Sul apoiaram a Campanha da Legalidade, liderada pelo governador Brizola. Conforme previa a constituição, o vice deveria assumir a presidência. Diante da crise, Goulart aceitou, depois de certa relutância, a imposição do regime parlamentarista, no qual teria poderes limitados.
Tancredo Neves é indicado para ser o primeiro-ministro. No final de 1961, o clima político volta a ficar ainda mais acalorado. As classes populares começam a perceber a importância das mobilizações políticas e intensifica o discurso em favor das reformas estruturais de base. O deputado nordestino Francisco Julião anuncia aos quatro ventos que a Reforma Agrária seria feita, de uma forma ou de outra, com base na lei ou com as armas empunhas pelos trabalhadores.


Operários, estudantes, intelectuais de esquerda e outras frentes sociais de resistência urbana respondem ao apelo do líder pernambucano. As Ligas Camponesas fomentaram a criação de outros grupos de apoio à reforma agrária. O panorama político nacional passava por um momento de tensão. Os mais radicais defendiam os movimentos revolucionários de esquerda. O clima político do final de 1961 motivou cerca de três dezenas de eleitores paraisenses a assinar as fichas para a reabertura do comitê local do Partido Comunista. Esta legenda política após passar por mais um dos seus vários períodos de clandestinidade havia reconquistado a legalidade. Havia um movimento nacional para reerguer o partido e então a liderança comunista paraisense empreendeu esforços para reorganizar o núcleo esquerdista da cidade.

Ao analisar as assinaturas, como a da ficha reproduzida a seguir, nos surpreendemos ao identificar nomes de conhecidos cidadãos paraisenses que nunca militaram na referida agremiação política. Nesse caso, a assinatura aposta ao documento expressa um apoio para reerguer a legenda local, mas isso não significa nenhum vínculo efetivo com a ideologia de esquerda. Essas assinaturas foram registradas em 16 de dezembro. As raízes mais distantes dessa opção política e ideológica foram plantadas em São Sebastião do Paraíso, em 1946, quando foi fundado o comitê local do partido comunista, sob a liderança do comerciante Carlos Gaspar, contando a união de um grupo de idealistas, entre os quais José Paes que foi secretário do partido. Os pedidos para reabertura do comitê local da agremiação comunista foram feitos através de fichas como a reproduzida abaixo a título de ilustração. Várias fichas de eleitores da 254ª zona eleitoral de Minas Gerais, pedindo a reabertura do comitê local Partido Comunista do Brasil, no final de 1961, podem ser localizadas no acervo do DOPS. [Doc. 178. Pasta 0053, APM]. Na íntegra de um desses documentos é possível identificar a assinatura de José Paes, seguida por vários de seus amigos de ideologia.

Pouco tempo depois, os eleitores que solicitaram a reabertura do núcleo dos comunistas foram fichados pelo DOPS. Seus nomes ficaram então registrados nos arquivos da polícia política para futura confrontação com outras possíveis provas de atividades políticas divergentes dos rumos ditados pelos governos militares. Passados 50 anos, grande parte dos arquivos dos órgãos de repressão política foi liberada para a consulta dos interessados. Um retorno necessário para a inserção do país no cenário mundial das nações desenvolvidas e menos injustas.

Por esse motivo, o retorno é uma necessidade histórica e não deve ser feito sem algum revanchismo Nesse sentido, de motivação histórica, a liberação dos acervos da polícia política e a indenização de vítimas de tortura são avanços recentes para a construção de um país sem ônus com esse passado. Bem antes do início da década de 1960, alguns comunistas paraisenses já estavam fichados nos arquivos do DOPS e também em órgãos análogos de outros estados. Havia uma ampla rede de vigilância para acompanhar todo sinal da chamada agitação social e política.

Campo Grande, MS, 24 de Janeiro de 2016.