A prisão de quinze paraisenses (1964)
 
Luiz Carlos Pais
 
As cinco décadas que se passaram desde 1964 têm permitido a publicação de alguns depoimentos para a escrita da história. Mas nem toda informação oriunda da memória pode ser usada para registrar um fato histórico. Por esse motivo é sempre necessário ter cautela no sentido de articular tudo o que pode ser articulado. Além dos traços da memória ainda há vários textos de natureza jornalística que também necessita desse cruzamento de dados. O livro do jornalista Leonêncio Nossa, publicado recentemente, revela detalhes importantes para compor parte da história de 1964, a partir do objetivo de focalizar a trajetória do militar Sebastião Curió que comandou a detenção de seus conterrâneos, muito antes de atuar na repressão à Guerrilha do Araguaia.

O premiado autor esteve na nossa cidade natal e entrevistou algumas testemunhas oculares da história. Um dos aspectos que me chamou atenção no referido livro foi a informação sobre a possível maneira que teria sido constituída da lista final dos paraisenses detidos. Antes que a memória local apague esses traços ainda remanescentes, é preciso registrá-los para que possamos aproximar um pouco mais da nossa história. E fazer isso com liberdade de espírito, honrando todos os antepassados que participaram do cenário histórico onde depositamos parte importante de nossas vidas.


O golpe foi desencadeado no dia 31 de março de 1964, quando o general Mourão ordenou o deslocamento de tropas do quartel de Juiz de Fora para o Rio de Janeiro. Essa movimentação foi o início dos acontecimentos que levaram aos longos anos da Ditadura Militar. A operação foi criticada pelo governador Magalhães Pinto por entender que o general poderia ter usado muito mais armas do que usou para evitar qualquer risco. Na capital mineira, o general Guedes que comandava a 4ª Divisão de Infantaria de Minas assumiu a posição de chefe militar do movimento. Esses dois líderes tinham algumas divergências que foram divulgadas no final da década de 1970, quando os dois publicaram suas memórias.

Retornando ao contexto de Minas, nos primeiros dias do mês de abril de 1964, o general Guedes tinha em mãos uma lista com os nomes de paraisenses, acusados de exercer atividades comunistas e subversivas. Era uma denúncia oriunda da própria cidade. Mas esta não seria apenas mais uma denúncia entre as centenas de outras motivadas pelos distantes mexericos interioranos. A denúncia contra os considerados rebeldes paraisenses despertou a atenção do general Guedes.

Mesmo atribulado com questões mais imediatas do movimento golpista, como deslocar tropas, definir estratégias, prender políticos socialistas, combater os focos de resistência interna e manter as redes militares e civis de informação. Tinha também em mãos, além da lista de Paraíso, várias outras denúncias contra as pessoas que apoiavam as reformas sociais ou apenas eram partidário do governo Goulart. Mas, a denúncia contra os paraisenses se destacava de muitas outras por fazer menção a uma suposta existência ilegal de armas e explosivos, que estariam de posse dos denunciados, tal como havia sido denunciado no episódio de novembro de 1962.

Dois de quatro décadas começaram a surgir os primeiros documentos que podem ser usados para compor o quebra-cabeça. Mais recentemente, com a indenização das vítimas de torturas cometidas por agentes do Estado, os paraisenses presos em 1964 ou seus parentes mais próximos fizeram os depoimentos formais para compor os processos judiciais. Esses depoimentos são peças auxiliares potenciais para a escrita da história. Em paralelo com o surgimento desses depoimentos veio também a abertura dos arquivos dos órgãos da repressão.

Os noticiários de rádio deram ampla cobertura à proclamada insurgência anunciada, em Belo Horizonte, pelo general Carlos Luiz Guedes que não mais acataria as ordens do presidente João Goulart. Em Juiz de Fora, o general Olímpio Mourão, fervoroso partidário do integralismo, anunciou que já estava com suas tropas em marcha na direção ao Rio de Janeiro. As notícias pegaram de surpresa vários chefes militares do país e agitação tomou conta de todos os quarteis.

Retornando ao momento da prisão de José Paes, a constatação visual feita pelo policial foi para corrigir um erro cometido pelos agentes que prenderam, por engano, outro sapateiro, ao invés de prender o José Paes. O delegado determinou que fosse preso o “sapateiro da frente”, referindo-se ao próximo nome da lista. Os policiais foram então ao quarteirão em frente da delegacia e prenderam o sapateiro Casemiro Potenciano do Couto que foi liberado logo em seguida. Próximo à delegacia se formou um aglomerado de pessoas. Alguns familiares tentaram entregar algum documento, agasalho ou mesmo medicamento para os presos que já estavam dentro de um ônibus estacionado em frente à porta da delegacia. Nenhuma aproximação foi permitida. Dentro do ônibus, os policiais ordenaram que cada um sentasse sozinho, em bancos alternados, e que permanece em silêncio. No começo da noite no mesmo dia, o ônibus partiu para um destino, até então, ignorado pelos presos e por seus familiares. Mas todos logo desconfiaram que o destino fosse Belo Horizonte.

A primeira parada foi às margens da represa de Furnas. O ônibus foi colocado sobre uma balsa para fazer a travessia do lago, quando ainda não havia ponte no local. Mas, ao invés de completar a travessia normal da represa, a balsa foi estacionada no meio do lago. As luzes do ônibus foram apagadas e os militares permaneceram, cerca de duas horas, aterrorizando aos presos, dizendo-lhes ser aquele o momento da execução sumária de todos. Mesmo com o estado psicológico abalado, todos resistiram em silêncio. Depois desses momentos, chegaram mais alguns presos de Passos que também seguiram para Belo Horizonte.

O ônibus chegou a Belo Horizonte na manhã do dia 10 de abril. Os detidos foram então levados diretamente para sede do DOPS, onde passaram todo aquele dia e pernoitaram todos espremidos numa pequena cela, sentados no chão devido ao reduzido espaço. No dia seguinte, 13 dos 15 paraisenses foram levados para a Penitenciária Agrícola de Ribeirão das Neves, na região metropolitana da capital mineira. Os outros que eram portadores de diploma de curso superior, o médico veterinário Braz Alves Vieira e o engenheiro Gilberto Gaspar foram colocados em “sala especial” no prédio do Centro de Preparação de Oficiais da Reserva.

A viagem de São Sebastião do Paraíso a Belo Horizonte levou 18 horas devido ao tempo em que ônibus ficou parado sobre a balsa de Furnas. Estava esperando a chegada de outros presos da cidade de Passos e durante a viagem os detidos não conseguiram repousar porque eram submetidos a constantes ameaças verbais. Os paraisenses detidos foram colocados, dois a dois, em celas de uma ala cuja construção ainda não estava finalizada. Um dos problemas era a falta de água na parte interna do prédio. A conexão hidráulica ainda não tinha sido feita. Diante do improviso, um oficial indagou se haveria no Grupo de Paraíso algum profissional bombeiro em condições de realizar o serviço de ligação da ligação. Apresentou-se então o Guerino Paschoini que se dispõe a fazer o serviço de ligação da água.

Foram providenciadas as ferramentas necessárias e em pouco tempo o prédio estava com as caixas de água abastecidas. Dentro de cada cela, havia apenas uma torneira com água e um vaso sanitário sem descarga. Sem considerar as precárias condições do ambiente e a péssima alimentação fornecida, a pressão psicológica maior foi o isolamento e a impossibilidade de estabelecer qualquer contato com a família ou advogado. Como foi dito acima, nem todos os paraisenses foram levados para a Penitenciária das Neves.

Alguns ficaram detidos no prédio do Centro de Prepara de Oficiais da Reserva, onde foram improvisadas salas “especiais” para os portadores de diploma de curso superior. Presos de outras cidades foram enviados também para a Penitenciária das Neves. Outros foram para as Instalações da Aeronáutica. Parte do Presídio Feminino foi ocupada e outros ficaram detidos em celas do Departamento de Ordem Política e Social, onde funcionou a coordenação militar das prisões.

Campo Grande, MS, 24 de Janeiro de 2016