Trajetória de um líder comunista
Carlos Vecci Gaspar

 
Luiz Carlos Pais
 
Este texto conta a história de um lider comunista de minha terra natal, chamado Carlos Vecci Gaspar, companheiro do meu pai e outros cidadãos que se aventuram em criar, em 1946, o núcleo dessa orientção política em São Sebastião do Paraíso, Minas Gerais.
Natural dessa mesma cidade, Carlos Vecci Gaspar n
asceu no dia 11 de julho de 1905. Filho de José Maria Gaspar e Paulínia Vecci Gaspar. Casado com Ilea de Oliveira Gaspar, com quem teve os filhos Gilberto, Leila e Marlene. Faleceu em 24 de outubro de 1977, em Uberaba. Antes de exercer atividade comercial, Gaspar foi pedreiro, mestre de obras e correspondente do Banco do Brasil, quando não havia agência desta casa bancária na cidade. Tinha espírito empreendedor no sentido de contribuir para desenvolvimento do comércio local como também para ampliar as condições de vida dos paraisenses.

Uma das primeiras iniciativas de Carlos Gaspar como empresário foi obter autorização federal, junto ao Departamento Nacional de Produção Mineral, em 1943, para pesquisar e explorar cimento amianto e produtos associados no município de Jacuí, bem próximo a São Sebastião do Paraíso. Mais precisamente, tal autorização fora obtida em terras localizadas nas cabeceiras do Ribeirão Santana, no mesmo polígono geológico no qual foi instalada, anos depois, a Fábrica de Cimento Itaú de Minas, entre outras grandes empresas de capital internacional. A visão pioneira do empresário ficou registrada, para os anais da história, no Decreto Federal no 13.481, de 24 de setembro de 1943, publicado no Diário Oficial da União, no dia 29 de setembro de 1943, cinco dias após ser assinado pelo presidente Vargas. A riqueza mineral região levou à instalação de empresas exploradoras de ferro, níquel e cimento, cujo impacto na região alterou o predomínio da produção cafeeira.

Gaspar contribuiu com diferentes instituições da cidade como a Sociedade Recreativa Beneficente Operária, a Associação Atlética Paraisense, o Operário Esporte Clube e a Associação Comercial e Industrial de São Sebastião do Paraíso. Durante anos, ele foi proprietário da Casa Americana, um grande estabelecimento especializado no comércio de alimentos, bebidas, ferragens e presentes em geral. Nesta casa comercial que funcionava no antigo prédio do Clube Paraisense trabalhavam os irmãos Antônio Rosa da Silva e José Martins, que também vivenciaram os agitados episódios de 1964. Membros das tradicionais famílias africanas que trabalharam nas antigas fazendas cafeeiras da região, os dois são protagonistas da memória de São Sebastião do Paraíso. Depois de trabalhar 25 anos na Casa America, Antônio Rosa e José Martins receberam de Carlos Gaspar o capital da empresa a título de indenização. O empresário então se mudou para Uberaba, onde estava residindo o seu filho Gilberto r que trabalha naquela cidade do Triângulo Mineiro.

Para registrar parte da memória do tempo vivenciado por Carlos Gaspar e a importância de atuação consciente na história de São Sebastião do Paraíso, procurei Boaventura Rosa da Silva (Tula), filho de Antônio Rosa da Silva, que contribuiu para recolher traços dos eventos ocorridos em 1964. Nessa época, Tula tinha 14 anos e fazia pequenos serviços na Casa Americana, para ajudar o pai. Reencontrei Tula como vendedor de uma casa comercial de materiais de construção. Marcamos encontro em sua residência, onde a conversa foi acompanhada pela sua esposa que nos ajudou a relembrar cenas da nossa terral da década de 1960. Minas irmãs Joster Mara Paes e Margarida Fernanda Paes também participaram desse exercício para recuperar traços esparsos da história recente da nossa terra natal.

Tula tem viva lembrança da infância, quando acompanhava, junto com seu pai, as animadas alvoradas organizadas por Gaspar e seus companheiros, todo dia primeiro de Maio, para comemorar o dia mundial do trabalho. Um grupo de trabalhadores seguia a Banda Municipal no trajeto entre o Estádio do Operário e a Liga Operária, onde era oferecido um lanche especial para comemorar a festa dos trabalhadores. Café com leite, pão com manteiga, bolo, biscoite e chocolate quente. Tudo regado por ideais de justiça social e em defesa dos trabalhadores e das classes populares.
O patrão foi honesto com os seus funcionários. A convivência de Tula com Gilberto e Leila Gaspar marcou sua formação de cidadão. A confiança e respeito mútuo entre patrão e empregados resultaram dos 25 anos de trabalho. Enquanto Gaspar estava detido em Belo Horizonte, a polícia foi vasculhar os depósitos de sua casa comercial para tentar localizar prova que pudesse comprovar atos de subversão. Nada foi encontrado porque nunca existiu nada mais do que ideais políticos.

Antes da busca ser realizada na Casa Americana, a polícia prendeu Antônio Rosa Filho, funcionário do estabelecimento. Antônio passou a noite na cadeia. Foi interrogado. Queriam saber onde Gaspar poderia ter escondido as supostas armas que constavam na denúncia enviada ao comando do golpe militar. A família de Antônio ficou desesperada, pois não sabia o estava acontecendo para ele estar detido na cadeia. José Martins presenciou a prisão do irmão, e já abalado com a prisão do patrão, sentiu vertigem, pressentido que o próximo a ser preso poderia ser ele. Antônio foi solto no outro dia. Conforme memória de vários amigos de Gaspar, a polícia foi ao seu estabelecimento comercial, arrancaram tábuas do assoalho e vasculharam o forro do prédio, em busca de alguma prova que pudesse incriminá-lo. Nada foi encontrado pela simples razão que se tratava apenas de defender ideais socialistas.

Quando se mudou para Uberaba, depois de 1964, Carlos Gaspar transferiu a sua empresa comercial, a título de indenização trabalhista, para Antônio Rosa da Silva e José Martins, antigos funcionários e amigos. A importância do testemunho prestado por Tula permite registrar neste texto a dignidade da Família Rosa da Silva, cuja dignidade tem profundas raízes na resistência dos povos africanos. Tula e José Martins, juntamente com outros cidadãos negros da cidade, receberam homenagem, em 20 de novembro de 2008, quando foi realizada a semana da consciência negra.
Quanto à Liga Operária é oportuno relembrar que alguns anos antes de 1964, a polícia encarrega das questões políticas e sociais havia implicado com a palavra “Liga”. Foi exigida então a mudança de nome da instituição que passou a ser “Sociedade Recreativa Operária”, onde eram realizados animados bailes populares. A palavra “Liga” foi associada a uma instituição criada para organizar os trabalhadores, como foram as Ligas Camponesas nordestinas lideradas pelo deputado Francisco Julião. O nome a entidade mudou no papel, mas continuou sem “Liga” para todos.

Em relatório elaborado pela Delegacia Especial da cidade, em 1952, consta que a informação de que a diretoria da referida instituição contava com a participação de quatro comunistas. Mas o delegado observa que a entidade não estava promovendo nenhuma atividade subversiva. Gaspar presidiu a Liga Operária e o Operário Esporte Clube e contribuiu para desenvolvimento da Associação Comercial e Industrial. Na década de 1960 ele se empenhou, com a ajuda de seus funcionários, Antônio e José Martins, na reforma do prédio do antigo fórum, que estava em péssimo estado de conservação, onde funcionou a Associação Comercial. Esse mesmo prédio serviu, posteriormente, para a instalação da Faculdade de Ciências Econômicas e Contábeis.

Para recolher lembranças deixadas pelo generoso paraisenses, fiz contato com a senhora Leila Gaspar que nos recebeu em sua residência em São Sebastião do Paraíso. A filha lembra com detalhes dos dias tumultuados das prisões de 1964. Na época, ela era estudante em Belo Horizonte. Assim que recebeu a notícia das prisões, logo tomou a iniciativa de prestar alguma ajuda material mais urgente. Preparou um cobertor, algumas frutas e bolachas e conseguiu autorização para visitar seu pai no presídio. O gesto carinhoso de Leila foi agradecido pelo pai. Mas, Gaspar pediu à filha que levasse os alimentos e o cobertor de volta, dizendo-lhe que não se sentiria bem em aceitá-los na impossibilidade de compartilhar o conforto com os colegas presos.

Em frente à Casa Americana ficava o primeiro estabelecimento de ensino primário da cidade, o Grupo Escolar Deputado Campos do Amaral. Havia uma cantina nesta escola que fornecia o lance para os alunos mais pobres. A cozinheira era a senhora Benedita Naves que fazia regularmente uma refeição reforçada para as crianças, à base de canjiquinha de milho, arroz, carne, legumes e outros produtos que normalmente eram doados por comerciantes sensibilizados. Entre os doadores regulares estava Carlos Gaspar. Quando a acabava o estoque da cozinha, a cozinheira atravessa a rua e falava, discretamente, com o honrado comerciante. Em pouco tempo, o funcionário José Martins atravessava a rua com mais meio saco de alimento para alimentar as crianças. Gestos que ficaram para a história.