D.Maria e a crente.

D.Maria e a crente.

D.Maria, mulher pequena, as pernas meio que arqueadas de tanto levar balde na cabeça quando criança,

E cheias de varizes que contavam historias de sua labuta nesse mundo de meu Deus.

Mulherzinha valente cearense carregava no sotaque de gente marruda, principalmente quando nervosa dobrava em tamanho e valentia, a voz crescia no peito e inchava tanto que parecia uma pomba gira, coitado daqueles que se pusesse em seu caminho.

Depois de muita luta no sertão casou com Josué homem bom, meio mole pro seu gosto, mas veio por gosto e porque gostou ficou e casou.

Esposa arretada, trabalhadeira, incansável vieram para São Paulo procurando dias melhores, cuidava da casa e dos quatro filhos, três meninos e uma menina, o que foi pena, porque ela tinha uma vontade danada de ter uma filha com o nome de Sirlei, achava lindo, imaginava-se a gritar com a criança - Sileeeei vem cá menina, senão tu levas uns tapas, eita nome lindo!.

Já tinha uma filha, o marido escolheu o nome, quando ela ouviu o nome da bichinha ficou danada, e tiveram que segura-la na cama pra não correr atrás do marido e mata-lo. Mariluce, o nome horroroso meu Deus! Resmungava, até que se acostumou.

O marido motorista de ônibus da linha rural, geralmente saia cedo pra pegar no batente, educar quatro filhos era fácil não.

D. Maria acordou meio desconfiado do marido, a família percebeu pelo jeito de responder da mulher, ela já tinha dito ao marido que esse bendito piquenique não ia dar certo, mas homem nunca ouve mesmo bufou ela.

O marido coitado era em paz com o mundo, sempre quieto e só cuidando da sua vida, evitava discórdia maiores com qualquer um.

O amigo Raimundo um crente, mas crente daquele bem chato, há semanas insistia em um piquenique com as famílias dos dois, afinal dizia ele, nossas mulheres tem que se conhecer, tinham que se unir no amor de Cristo.

Isso não ia prestar, pensava Josué, a mulher já dava mostras que tava ficando perigoso o caminho, mesmo assim preparou o terreno e foi devagarzinho um pouco a cada dia falando bem do amigo Raimundo da mulher e dos seus filhos.

D. Maria escutava, e via com rabo de olho, por dentro matutava, esse homem ta com trololó, vou lá querer saber dessa família besta, todos crentes, nenhum se salva, todos chatos, rotulava sem conhecer, porque se não era do Santo Papa não prestava, nessa hora se benzia e olhava pro céu pedindo pelo coitado do Papa tão velho doente, ela já via o coitadinho amarrado na cadeira pra não cair de cara no chão.

Josué pediu, implorou, ameaçou, fez promessas só faltando ajoelhar-se aos pés da mulher por aquele piquenique, não por ele, mas, pelo amigo que todo dia cobrava uma resposta, e ele já farto daquela histora e sem ter mais desculpas a dar à Raimundo pressionou a esposa até ela aceitar.

D.Maria agastada concordou pelo marido por ele faria um sacrifício, mas, avisou nada de falar de religião, isso não, ninguém podia tocar nem mesmo no nome do santo Papa.

Josué concordou, porém resolveu não apelar ao amigo esse pedido afinal tinha certeza que todos juntos teriam mil outros assuntos a ser discutido.

Dias depois os preparativos já prontos, D.Maria penteando os cabelos da filha Mariluce com força ignorava os ais da menina que sentia, ficaria sem a cabeça a qualquer momento pela força colocada no ato de amarrar as tranças,a mãe de vez em quando dava um pipirote na cabeça da coitada, ordenando que engolisse o choro e ficasse quieta.

Tudo pronto e todos arrumados, ela ainda resmungava que isso não ia prestar, enfim partiram num carrinho de terceira mão, lotado de filhos e comida, iriam se encontrar no portão do clube.

Josué chegou um tiquinho mais cedo, um ponto a favor dele e a desgraça do outro, D. Maria se viu no direito de dizer que gente assim não tinha respeito com ninguém, e continuo a ladainha até que teve que se calar com a chegada da outra família.

Raimundo também num carrinho velho, porém mais cheio visto que a mulher tinha peso é verdade.

Desceu Raimundo que correu a cumprimentar a família do amigo, Maria de rabo de olho como uma águia sem perder nenhum movimento, todos parados à espera da mulher de Raimundo, que se demorava por demais da conta foi quando Maria olhando enviesado pra Raimundo perguntou se não era melhor ele ajudar a mulher, o que sem graça fez correndo.

A esposa de Raimundo reunindo suas tranqueiras decidiu que depois pegaria o resto, sofregamente desceu do carro e em passos miúdos porque a gordura a brecava na velocidade, chegou arfando e sem fôlego pela caminhada, onde foi devidamente apresentada ao grupo.

A primeira coisa que Maria notou foi o tamanho do coque, que nojo pensou, já imaginando um fio daquele cabelo seboso em seu prato de comida, desceu o olhar para as pernas gordas parecendo duas toras de madeira sustentadas por dois minúsculos pezinhos gordos.

As duas se encararam. A coitada da gordinha sentiu um frio descer pela espinha sobre o olhar da cearense, deu uma fungada e junto um graças a Deus pra ter que agüentar aquele ser que parecia uma mulher com sotaque arretado e ruim de gênio.

De rabo de olho continuaram a se olhar pelo resto do dia, acharam um lugarzinho que a crente agradeceu a Deus, o filho menor gripado chupava o nariz antes que a meleca entrasse na boca, isso foi o dia todo em todas as Graças a Deus da mãe era uma chupada de nariz, às vezes ele passava o bracinho magro que já duro do ranho brilhava.

Maria não gostou nem um pouco daquele descaramento do menino a encará-la chupando o nariz, olhou o marido que num olhar implorava paciência.

Depois de voltas pelo clube, brincadeiras das crianças e muita conversa jogada fora resolveram comer, ai o bicho pegou.

A cada naco de comida ou fruta mastigada a mulher de Raimundo dizia uma graça a Deus que se transformava num coro que crescia e depois morrendo devagarzinho, assim como num jogo de futebol que todos fazem a onda com os braços e vão baixando devagar.

Era chupada de nariz, graças a Deus, a mastigação, o coro, o tempo que de birra não passava, e D. Maria que já tava até o topo de tanta raiva.

Incomodada perguntou a crente se o menino tava gripado pensando em ensinar um remédio, mas o Graças a Deus já sarando não deixou.

Maria rilhava os dentes, fungava, descabelava e sinalizava pra marido querendo ir embora, Josué disfarçava, falava se engraçava e fazia de conta que não via ou ouvia os pigarros que a mulher soltava de vez em quando preocupado porque o pigarro crescia em altura e raiva.

A crente já de garganta seca com tantos pigarros resolveu descascar laranjas e repartir com as crianças presentes, o coro foi aumentando o cada gomo repartido.

Os movimentos frenéticos de Maria deixaram Josué e os filhos apavorados, conheciam a mãe, que quase salivava de tanta raiva, e quando esticou a mão com a laranja para dar ao garoto ranhento viu a mãe gorda abrindo a boca é não se conteve, deu um pulo e apontando a faca à garganta da infeliz gorda num entre dentes disse numa só voz.

- Mais um Graças a Deus, e tu vai lá fala com ele pessoalmente, lhe furo a gargara agorinha mesmo, chega de tanto lenga lenga. Deus não agüenta mais, nem mais um piu. Deu uma volta sobre si mesma com a faca na mão mostrando a autoridade de cearense.

Todos pegos de surpresa pararam as crianças emudeceram, a crente cruzou os braços na frente dos peitos como se fosse atacado ali, o moleque assustado foi dar mais uma fungada, Maria se virou para ele com tanta violência nos olhos que o menino engoliu em seco e escondeu-se atrás da mãe.

Todos calados. A mulher com a faca na mão esperou ainda alguma reação que não veio, deu uma rosnada e sentou-se, começou a comer ao que os outros a seguiram, mas desta vez em silencio, só se ouvia o vento e os pássaros.

Nenhuma palavra foi dita, como se tivessem cronometrados cada um foi arrumando suas coisas, e em sincronia foram pegando seu rumo.

Maria de vez em quando bufava, fazendo com que todos a olhassem de rabo de olho, entraram nos seus carros, Josué e Raimundo se olharam ainda uma ultima vez pensando que talvez pudessem continuar a amizade sem as esposas, o futuro diria, balançaram a cabeça em cumprimento e partiram.

Luzia Rastelli
Enviado por Luzia Rastelli em 05/07/2007
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