Carmo é consequência da má interpretação

Acostumado a viver numa política “cleptodemocrática”, onde todos podem roubar que ninguém vai dedurar, Carminho, já na oitava série, começou a colar na escola, ninguém o dedura porque ele nunca dedura ninguém, certo dia decidiu dedurar um menino do qual não gostava, este o dedou na primeira oportunidade que teve, a bagunça deu-se nesse ano, todo mundo dedava todo mundo, menos o CDF do Maurinho, acabou-se todo o esquema da sala. Carminho aprendeu que nunca deveria fazer isto com ninguém. _ Denunciar o colega é feio. Diziam. Maurinho foi o único do ano que foi com mais de noventa por cento, foi o único zombado por todos, foi o único apelidado de Nerd.

José Carmo, o Carminho, aprendeu a furar fila no parque, no cinema, no banco. Como todo mundo do bairro fazia. Aprendeu a passar o padeiro pra trás, comprava dez pães por preço de sete, conseguia bala e paçoca sem fazer muito esforço e sem pagar. Aprendeu a convencer seus amigos de que estava certo. Sempre que queria, convencia alguém a fazer por ele. Convenceu sua mãe conservadora que, maconha era normal, que chifrar a namorada era comum, convenceu seu avô a lhe dar o carro que adorava. Percebeu sua capacidade de persuasão, era ótimo orador, estava convicto do que queria, era sua cara.

Então candidatou-se vereador, dava carona pra quem morava longe, cesta pra quem tinha fome, caderno pra quem queria estudar, maconha pra quem fumava, dentadura pra quem á tempos não mordia, óculos, etc... Foi vereador por mais de três vezes, aprendeu a roubar verbas (sem eufemismo, por favor!), a persuadir colegas de serviço, virou deputado, fazendeiro, dono de açougue, empresário. Sua esposa dona de grife, sua filha de salão, seu filho já era prefeito, o outro era dono de uma concessionária e ajudava o pai a tramar algumas falcatruas, nepotismo descarado, até seu colega virou assistente do pai.

Carminho ensinou seus filhos o que começou a aprender na escola, ensinou-lhes a ser cúmplice da corrupção, mostrou-lhes o caminho da facilidade, tudo que é mais fácil é melhor, dizia. Sua família virou uma quadrilha, foi descoberta, pagaram o juiz, ficaram famosos entre os melhores, uma família de tubarões barões.

Porém uma coisa incomodava José do Carmo, aquele dia na escola, havia se passado mais de trinta anos, lembrava-se que aprendeu a roubar no jogo de baralho, nas peladas aprendeu a cavar faltas, na sala aprendeu a enganar a professora, a copiar dever dos colegas, aprendeu a ser cúmplice dos colegas nas suas mini-trapaças, aprendeu isso tudo, mas nunca aprendeu como Maurinho era capaz de sobreviver daquele jeito, sem se envolver nos pequenos delitos do pessoal da turma. Encabulado com aquilo, mandou seus capangas achar o CDF, era impossível haver alguém sem problemas de corrupção, pra Carminho ou José do Carmo era impossível, sempre foi impossível, tinha de achar esse menino, o Maurinho precisava se explicar, ele tinha que achar algum defeito no Maurinho.

Mas...

O CDF havia suicidado dias antes de ser achado pelo José Carmo, na carta de despedida estava escrito a seguinte frase dentre outras:

“Os bons morrem cedo, eu fui bom, estava demorando a morrer, então fiz o serviço pra Deus, você maus que fiquem com este mundo que pra mim é um carmo”

Depois de ler, triste pela morte do seu ex-colega de escola, Carminho foi com a carta atrás de seus filhos e mostrou-lhes mais uma prova de que ser bom não é bom.

Enzo Pinho
Enviado por Enzo Pinho em 05/07/2007
Reeditado em 05/07/2007
Código do texto: T552727