O coração

Sempre considerei minha incapacidade para desenhar um coração como uma das mais ferrenhas provas, de que eu seria também incapaz de construir o que chamamos de “relacionamento".

O eterno projeto arquitetônico onde cada traço traçado tem o poder de decidir o futuro. Lembro-me da primeira vez em que tal projeto me foi incumbido, as mãos ainda sem preparo que insistiam em apertar o lápis com uma ferocidade quase animal e o papel, que riscado, parecia exalar uma revolta quase palpável.

Dona Juliana, criaturinha miúda e de voz forte, veio inspecionando o que os pequenos haviam feito e foi com certo choque que observou as duas colunas desiguais que eu inocentemente havia gravado no papel a ponto de quase furar a folha.

“Ceci” tinha dito, “a tia pediu para você desenhar um coração igualzinho aquele do quadro, viu? Vamos, tente de novo”.

E eu comecei a traçar novamente os dois morrinhos com tamanha vontade que quem, imagino, olhar-se ao longe, veria até rugas de concentração se formar em meu rosto infantil.

Orgulhosa, mostrei enfim minha obra a tia Juliana, estranho isso, agora me parece quase inacreditável que eu me referisse àquela mulherzinha como tia. Ela olhou meu desenho como se este fosse um bicho peçonhento e soltou um elogio vazio, inerente aos adultos que acham válido mentir para poupar alguém de uma verdade desagradável.

Minha mentalidade infantil não me permitiu acreditar naquela mentira, e em casa galguei a tarde a tentar juntar aqueles morrinhos, auxiliada por mamãe a quem com lágrimas nos olhos contei sobre minha infelicidade.

Mamãe de cabelos e olhos claros, e eu com minha negritude de cabelo, olhos, sobrancelhas, cílios, e ocasionalmente, unhas, ficamos a desenhar a mesa da cozinha, mamãe com seu coração perfeito e eu com meus morrinhos.

Muitos anos mais tarde e muitos morrinhos depois, vim a me formar em medicina, e a descobrir, que na verdade, o desenho a que todos atribuem inadvertidamente o nome de coração nada tem a ver com o órgão propriamente dito. Isso no fundo acabou por me trazer uma certa paz a qual eu não sabia precisar.

No mais, meus morrinhos continuam tão deformados quanto antes, mas prefiro pensar que eles são os únicos a retratar verdadeiramente a condição do órgão humano. Torto, desigual e vazio.