Rumo ao Infinito


Tudo começou de uma simples brincadeira entre amigos – aliás, tantas coisas sérias começaram assim em nossas vidas –, logo após a festa anual de nossa cidade, no segundo domingo do mês de julho dos anos 62 ou 63, sei lá. O importante é que estávamos em meio ao tempo dos grandes lançamentos de foguetes por russos e americanos, com a conquista do espaço ainda comemorando o arrojo do envio de Laika e Sputnik à estratosfera e resolvemos dar e demos nossa contribuição com o envio de nossas engenhocas ao espaço – ou quase...

Tudo começou.... Ah, sim, como tudo começou, se é que tenha tido realmente um começo mais esta nossa história, senão em nossos sonhos de adolescentes vivendo em um espaço físico bem menor que nossas imaginações férteis permitiam... Eu só sei que caminhávamos pelo “recinto da festa” e encontramos um rojão que não fora ainda queimado durante a comemoração final das festividades e que escapara ileso do que deveria ser sua apoteose, riscando com rastro de fogo a noite fria e explodindo no alto do céu estrelado, para o embevecimento de todos, o que pode ser considerado como o “start-up” para a série de acontecimentos que sucederam sua descoberta.

Fato simples, corriqueiro e inocente mas que, mesmo durante muitos meses após, repercutiu em nossas vidas e continua repercutindo até hoje quando lembrados, principalmente quando rememorados nos contatos com amigos e nossos filhos e netos que nos pedem que contemos a história e, o que é bom, com imensa saudade quando se encontram os participantes dessa aventura, Maneca, Nen e eu.

Após o sucesso dos primeiros lançamentos de nossos foguetes, com corpos feitos de bombas de “flits” - quem ainda se lembra delas, utilizadas para matar pernilongos – e “motores” por rojões adquiridos na fábrica de fogos em Muqui, resolvemos dar continuidade dentro de um novo patamar tecnológico, construindo-o inteiramente.

Meses e meses de pesquisas quanto ao combustível a ser utilizado nas poucas literaturas disponíveis, principalmente nos livros de química que Nogueirinha nos emprestava, dúvida imensa quanto ao nos aventurarmos em busca de um novo, ainda pouco testado e constituído a partir de cascas secas de tangerina ou laranja trituradas, optando-se afinal pela tradicional de pólvora preta que adquiríamos n´A Arca de Noé, quanto à necessidade de um sistema de ignição mais confiável e que nos protegesse de uma eventual explosão, ao invés do tradicional de o acendermos deixando a cara no caminho, quanto à fuselagem e todos os demais aspectos técnicos do lançamento, tudo sob os olhares atentos de seu Ivone, pai de Maneca, que somente comentava: - Enrico, Enrico , isto vai dar merda...

Superadas todas aquelas dificuldades, o foguete estava pronto, com a fuselagem reluzente pintada na cor preta e com nossos nomes gravados nas três aletas, para que identificassem a origem e aos autores da proeza onde quer que caísse em seu retorno. Afinal, ele podia cair em outro município e sabíamos da inveja que os sãopedrenses ou muquienses tinham dos mimosenses, nesta eterna disputa fratricida. E fomos à luta...

Sem nos deixarmos conduzir pelas etéreas divagações que o assunto suscita, mas pautado pela obrigação de transcrever exatamente como ocorreu, a seguir relatamos a seqüência dos acontecimentos que poderiam e deveriam ter levado o nome de nosso querido Mimoso à glória do espaço e até mesmo mudado os destinos de todos, tivéssemos recebido algum apoio ou compreensão em nossa empreitada, a exemplo do ocorrido com Wernner Von Braun e que afinal o conduziram a Peenemunde para a fabricação das V2 e posteriormente à Nasa para a conquista do espaço ou de Sergei Korolev, na extinta União Soviética.

Escolhemos criteriosamente o local de lançamento – a quadra de esportes do Ypiranga, por ser de cimento e plana – e ao lá chegarmos, fomos surpreendidos por todo o público que já se encontrava a nossa espera, constituído pelos alunos do colégio e muitos adultos, uma verdadeira multidão. Parece que Nen deixara vazar nosso segredo e Walter Borracha tomara conhecimento e como bom repórter o noticiara pela rádio ZYO-26 que, como se sabe, falava para o Brasil e para o mundo, daí a presença de tantos expectadores...

Após todo o trabalho de isolarmos a área da quadra, posicionamos o foguete a seu centro e estendemos o sistema elétrico de ignição que Maneca desenvolvera e que nos permitia acioná-lo mesmo à distância – um recipiente com gasolina onde se colocara uma resistência elétrica que faria a combustão inicial, interligada por fios a uma caixa de controle e ligada na eletricidade da quadra – funcionando como um interruptor a ser acionado ao ponto zero da contagem regressiva.
Nen ficou responsável pelo acompanhamento da trajetória do foguete e, zeloso, até mesmo conseguira e trouxera o binóculo de seu Lauro, seu pai, para fazê-lo, exibindo-o pendurado ao pescoço, imponente. Chegara o momento decisivo de sermos lançados ao espaço...

... Três... Dois... Um... Partiu!!! Tudo funcionou exatamente como o planejado... Em meio à fumaça desprendida, enquanto eu e Maneca comemorávamos o sucesso, Nen procurava o foguete nos céus e não o encontrava, afirmando que ele entrara em órbita... No piso da quadra, nosso foguete agonizava, queimando-se lentamente e, logo após, novas arremetidas tentando ganhar o espaço, gerando confusão entre os presentes que se aproximavam, causando-lhes sustos...

Tenho que reconhecer que fui o causador desse insucesso: é que, como incumbido do abastecimento do foguete, após enchê-lo de pólvora, pendurei-o no varal de minha casa para que secasse inteiramente e viajei por dois dias, esquecendo-o lá. E para nosso infortúnio, durante aqueles dois dias choveu bastante e encharcou-o, fazendo com que ele não subisse como planejado, frustrando-nos. É que não julgava que ele fora tão atingido...

Devo confessar que, da mesma forma que como os demais, por inúmeras vezes, décadas após, dirigi-me a locais onde adquiri tubos e tarugos de duralumínio para a confecção de foguetes mais evoluídos, pesquisei sobre novos combustíveis e sistemas de rádios para seus rastreamentos, confeccionei para quedas para as descidas das naves que não enviei ao espaço, dando continuidade a este sonho que um dia sonhamos, de voarmos, rumo ao infinito.
LHMignone
Enviado por LHMignone em 04/03/2016
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