LULA: A QUEBRA DO MITO

Confesso que me emocionei quando vi o Lula discursando, ao voltar para casa, após ter sido obrigado, sob vara, como se dizia antigamente, a depor no inquérito existente contra ele na Polícia Federal. Primeiro, porque foi, obviamente, uma medida desnecessária, do ponto de vista jurídico, mas absolutamente necessária para os efeitos midiáticos que se objetivava, que eraM , além de ferir fundo o Presidente, “quebrá-lo”, como se diz em linguagem policial; a tentativa de um linchamento moral , de destruir desde logo o mito , antes de jogá-lo na cadeia, como pretendem, impossibilitando, assim, que se seja candidato à Presidência, nas próximas eleições.

Quero deixar claro que nunca fui petista, Graças a Deus, porque senão estaria hoje como milhões de petistas neste país, de cabeça baixa, derrotados pelas falcatruas de uma minoria. Comovi-me, confesso, porque antes de tudo pensei no homem, na trajetória de sua vida, em tudo o que fez em prol dos menos favorecidos do nosso país. Pensei no que deve ter sido para ele, em termos de sofrimento pessoal, da idéia que faz de si mesmo, ter sido tratado de modo injusto, quase degradante. Logo me veio à mente, o Getúlio: o que ele mais temia era exatamente isto, ser humilhado por homens frios, sem grandeza, movidos por uma ideia fixa que não disfarça o profundo ódio que sentem em seus corações. Getúlio preferiu matar-se. Lembro-me como se fosse hoje: o Rio de janeiro , quando a notícia saiu, parou; de um lado a outro, o silêncio abateu-se sobre a Cidade estarrecida. Foi como aquele vazamento da maré que antecede um tsunami; e depois, o estranho rugido das massas que, aos prantos, foi se dirigindo ao Palácio do Catete. De imediato o líder esfrangalhado pelo massacre impiedoso e sistemático de seus inimigos, recuperou a sua condição de mito. Muitos tentaram destruir este mito, mas até hoje sobrevive. Foi necessário o surgimento do Lula para que a bandeira trocasse de mãos: agora não era apenas a questão dos direitos dos trabalhadores que, a todo momento tentam solapar, mas a complementação de ações sociais que levaram milhões de pessoas a outro patamar de existência. Lembrei-me também de Janio Quadros, só que este renunciara, então via as coisas por outro ângulo, aliás, porque tentara um golpe, numa jogada de mão, e falhara. Dizem que o Coronel que dirigia o chamado IPM, querendo tripudiar, perguntou ao ex-presidente: “Não sei como devo tratá-lo, de Doutor ou Professor ( já que o Jânio exercera as duas profissões). Jânio respondeu na lata: ”Prefiro que nos tratemos por nossas respectivas patentes – o Senhor, Coronel, eu, Presidente”( a lei garante aos ex- Presidentes o tratamento de Presidente).Também tentaram humilhar o Juscelino, intimado a depor inúmeras vezes depois do Golpe de 64, até que um dia, cansado, mandou um recado para o Castelo , dizendo que não iria mais. O Castelo, que andava com complexo de culpa, porque fora apoiado pelo Juscelino e também pelo Jânio, enfiou a viola no saco e mandou que parassem com aquilo.

Porque estou falando destas coisas distantes que aparentemente não tem relação com o que está acontecendo hoje? Simplesmente porque já vi o filme, e talvez isto seja o que mais me tenha entristecido: as razões profundas que estão por debaixo de tudo são sempre políticas. Todo grande líder deste país foi odiado pelos segmentos que em nome da moral, praticam a maior das imoralidades, que é a de tentarem manter a qualquer custo os seus privilégios. A pergunta que me faço é a seguinte: o Lula merece o que está acontecendo com ele? O Getúlio mereceu? Acho que em parte sim. Getúlio foi um ditador frio, seu esbirros não eram mole não, e o Felinto Miller, seu Chefe de Polícia, era nazista. Ter entregue a Olga Benário, mulher do Prestes, aos nazistas, sabendo que seria assassinada porque era judia, foi um crime hediondo; o Lula, de seu lado tem sido , como disse o Ciro Gomes, um frouxo em matéria moral, não estava nem aí para o que acontecia. No mínimo, para não fazer afirmação leviana, fechava os olhos. Não percebeu o mal imenso que se fez contra o povo, principalmente aqueles que levaram nas costas a bandeira do PT. Um líder que se esquece daquilo que pregou para chegar ao poder comete um pecado mortal no campo da política: um dia , a cobrança chega. Um líder que não é capaz de se manter junto às suas raízes e fazer o “mea culpa”, quando a imoralidade acontece, vai se esvaziando, se esvaziando, até virar o boneco Pixuleco. Porque se os reacionários estão de manguinhas de fora , pintando e bordando, milhões de brasileiros estão pagando a conta da frouxidão do Lula, que não é a causa, evidentemente do que está acontecendo, mas que o marcou como um líder incapaz de zelar pela coisa pública, e quando essa coisa pública é a Petrobras, aí a questão assume uma proporção gigantesca, porque a Petrobras é um símbolo de nossa luta pela emancipação econômica, é a mãe de todas as bandeiras que foram erguidas por uma geração inteira:”O Petróleo é nosso!”.

O Poder corrompe, não adianta negar. O líder de um movimento revolucionário – num sentido amplo do termo, ou seja, de uma transformação qualitativa da sociedade – sofre tantas pressões e tentações, que dificilmente resiste. Acaba compactuando. Sempre me impressionou a decisão de Emiliano Zapata, o famoso revolucionário mexicano, que ao perceber que estava se esquecendo dos pequenos agricultores, seus irmãos, deixou a Presidência do México e foi continuar a Revolução. Foi traído e assassinado algum tempo depois. Mas tornou-se um mito. Intuiu que era impossível conciliar o Presidente com o camponês, e preferiu continuar camponês , e voltar a ser um dos líderes da Revolução , lutando, como o famoso Pancho Villa, pela derrocada de um regime cruel e extremamente concentrador de renda.

O momento é triste – para o Lula, para o PT e para todos nós. Não sei como tudo irá acabar, mas o sentimento de “dejá vu” me entristece, como se a História ficasse patinando no mesmo lugar e nosso sonhos nunca se realizassem. A minha geração perdeu o bonde da História. Tudo o que sonhamos para o nosso Brasil foi de roldão. Cometemos erros? Inúmeros, certamente. Talvez o maior deles tenha sido o de não levar a sério a subversão dentro das Forças Armadas, o de termos subvalorizado o profundo sentimento de hierarquia, o de não ermos entendido que para o militar, esta é uma questão crucial. Deu em 64, um atraso de 20 anos em nossas instituições democráticas. Em grande parte a culpa foi nossa. A geração de hoje, realista, mas pouco politizada, tem diante de si um grande desafio: ser generosa, em todos os sentidos. Nunca adotar o critério de dois pesos, duas medidas, como está ocorrendo diante de nosso olhos. Nunca prejulgar, como está acontecendo.Outro desafio é o não se deixar levar pelo consumismo - o canto da sereia de um sistema tão concentrador de renda, tão injusto, a semente de grande parte de nossas mazelas sociais. Não se deixar usar, em nome da indignação, pelos que tentam manipular, para manter o que lhes interessa.

Esta geração terá que criar o seu mito, porque este, o do Lula, está quebrado. Mas não o que ele representa. E o mito é necessário, o mito encarna o sonho. Como dizia o grande poeta Fernando Pessoa: “ O mito é o nada que é tudo”.