Pelo interfone

Patrícia perguntou pro porteiro por Daniel: "acabou de subir com o pão" - respondeu. Deu meia volta e foi até o interfone na frente do portão do prédio:

"-Daniel... É a Pati, Daniel. Eu sei que tu ta aí então... Sei lá só queria te dizer. Esses dias eu tava ouvindo Cícero. Aquela música que a gente sempre curtiu. Aliás, aquelas músicas todas...Enfim. Eu tava lembrando daquele tempo... Que a gente sentava no sofá la de casa e ficava no escuro comendo negrinho com a música alta. Tudo começou com Beatles que tu me apresentou. E eu te apresentei Caetano. Leãozinho, eu dizia, era a tua música. Por causa do teu jubão de leão lembra? Me encantava teu cabelo, teu jeito, meigo, carinhoso, gurizinho... 'Gosto muito de te ver leãozinho, caminhando sobre o sol'(...)" - Daniel sentado no banco em frente a secretária eletrônica ligada no viva-voz. Um copo de café com e leite e um pão com margarina. Chorava. (...) Gosto muito de você, Leãozinho, para desentristecer, Leãozinho. O meu coração tão só. Basta eu encontrar você no caminho...' " Pati cantava, sorridente. Daniel chorava, em silêncio. " - Depois tu me apresentou Syd Barret, Oasis, Alex Turner, Radiohead, Doors, Cícero... Que saudade, Daniel. Que saudade desse tempo! Porra! Eu tava ouvindo tudo isso esses dias e lembrando de tudo. A gente saía da aula e ia direto pra pracinha do lago fumar um. Depois chegava em casa e enrolava vários baseadinhos bem fininhos pra render mais. Tudo isso com o som tocando alto na caixinha de som do PC da mãe... Fumava um cigarro de cada vez e tomava café. As vezes tu ficava morgado na rede, enquanto eu fazia a janta. As vezes tu ficava morgado no sofá... Eu parava um pouco e ia me deitar contigo, depois voltava. As vezes era tu quem se se levantava. Tri morgado, quase arrastando os chinelos no chão e vinha até a cozinha me dar um beijo, ficar um tempo ali comigo, falar alguma bobagem pra me fazer rir. Depois saía e voltava pra deitar, escolhia uma música. Fumávamos o penúltimo antes da janta pra abrir o apetite e o último depois da sobremesa para fazer a digestão. Ah! Ouvíamos muito Los Hermanos também... Lembro que ouvíamos muito aquela 'O Velho e o Moço'. Ah cara. Que saudade! Te lembra que nossos fios de cabelo se enrolavam de estática? Tu dizia que quando nós estávamos de mal eles não se enrolavam. Que só se enrolavam quando a gente tava de bem... E era proibido dormirmos de mal. Lembro que isso era proibido, mas as veze acontecia. Tinha vezes que passávamos o dia de mal e de noite na cama, a gente se abraçava aos poucos e se beijava, se desculpava. Eu te abraçava de lado e tu de barriga pra cima, com um braço meu e uma perna por cima de ti. E do nada dormíamos. Ah! Olha só do que mais lembrei. Isso tu não vai gostar de lembrar: Subindo o morro da Alameda atrás da mina que roubou meu casaco..." -Os dois riam-se, sorriam.- " Lembrei também, la no início, quando a mãe ainda morava comigo. A gente chegou um dia do curso... Ah te lembra quando tu deu uma flor e um sorvete Magnum pra mãe?! Dani esse dia foi muito engraçado tu todo tímido pra falar com ela: 'É pra senhora'. Todo vermelho... Enfim eu tava contando... Aé! Da vez que a gente chegou do curso, ainda só como amigos e a mãe tava tomando café com meu padrasto na mesa, a gente cumprimentou eles e eu logo te puxei pro quarto. Lembro que a gente nem tinha se beijado ainda, mas já tava apaixonado um pelo outro. Tu sentou na cama e eu sentei no teu colo e te abracei. E ficamos assim por um tempão. Dando selinhos cheios de paixão, achando mesmo que era só de amizade aquilo... Realmente era... Carinho. Amor. Mas mais carinho. Nada de mais. E todo dia a gente chegava do curso e corria pro quarto ficar abraçados dando selinhos amorosos. Depois tinha os tipos de beijo... Porra como era mesmo?! essa eu vou deixar por tua conta. Quanto tu lembrar, me diz. Que talvez eu tenha me esquecido de tudo isso também. Assim como eu sei que tu esqueceu...De tudo isso... Então, eu tava ouvindo Pelo interfone do Cícero e percebi: 'Cara, eu tenho que falar isso pra ele!' Que tu é um sonho bom, que mudou o tom da minha vida, comprida. "

"...Para desentristecer, Leãozinho

O meu coração tão só

Basta eu encontrar você no caminho..."

Raul Nini
Enviado por Raul Nini em 15/03/2016
Reeditado em 24/03/2016
Código do texto: T5574027
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