Discípulos da República

Éramos bolsistas da Faculdade de Medicina de Valença. Todos de famílias da classe média baixa com a pretensão de formar um filho médico, socialmente mais elevado.

Morávamos em três num quartinho com banheiro em frente a Faculdade, em cima do Bar do Vicente.

Era um ponto estratégico para os amigos fazerem xixi, as amigas dormirem perto da aula do dia seguinte e o povo buscava nossos cadernos para xerocar rapidinho os famosos resumos da Margareth.

A gente estudava prá burro para compensar a defasagem de nossos colégios públicos e pouco especializados para a área biomédica.

Tínhamos pouco tempo em ‘casa’ e, pela falta de espaço, qualquer roupa fora da mala já se enrolava com alguma apostila, resto de biscoito ou instrumentações anatômicas (quando não algum osso da caixa ou lâminas histológicas).

Não queixávamos dos pregos com cabides e cortina de boxe por cima serem nosso guarda roupa, nem dos tijolos com tábuas, estantes de livros, e o filtro com uma bandejinha com biscoito, açúcar e doce numa caixa de sapatos, cozinha. Fazíamos nossas refeições na casa da avó da Cida, aluna também.

Éramos socialistas, românticas, engajadas e estudiosas. Claro que também festeiras, íamos ao ’84, 14 BIS e na Boate Carrancas, acho. Sempre participamos do DAME (Diretório Acadêmico) e era certo nos encontrarmos com o povo nas terças de noite para ensaio de teatro, aula de ioga ou até grupo de coral.

Todos tinham apelido. No meu caso era Piti, apelido de infância, Wilmaça e Margot. Sempre ocorria algo que provocava risada demais em todas nós. Divertíamo-nos com a própria rotina de nossas vidas. Vou contar uma estória que aconteceu no segundo ano.

Havíamos limpado a ‘casa’ com um capricho especial. Enceramos o chão, lavamos as roupas e na hora em que terminávamos de recolocar as camas dentro do quartinho, aflitas para tomarmos o nosso banho, muitas vezes todas juntas mesmo, chegou um amigo nosso, Bené, nitidamente alcoolizado pelas misturas do ‘Maravilha’ com cerveja e cigarro. Nós o olhamos como a um cão sarnento, e em câmera lenta nos postamos a sua frente, sentamos numa das camas e ele na outra. O suor emanava de seu corpo, um odor de nicotina, bar e tristeza saía empalidecendo sua face . Mesmo assim, ele conseguiu perceber a limpeza para em seguida fazer a primeira golfada de vômito, por dentro da gola da camisa, e as outras sequenciadas com as passadas de pernas, quase ajoelhadas, para fora da casa. Nada pingou no chão, a não ser nossa estupefação e rindo do inusitado.

Marise Cardoso Lomba
Enviado por Marise Cardoso Lomba em 02/10/2005
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