VAI QUE É TUA DARTAGNAN FERRAZ!

Retornando de um jantar com amigos,meu filho coloca sobre a mesa uma garrafa de "Pivo" e um embrulho com bolachas caseiras.

Explico: "Pivo" é a denominação que os poloneses dão para a tão conhecida por aqui,cerveja caseira.

Nem preciso dizer que Thiago jantara na casa de polacos,amigos nossos,residentes numa colonia eslava nas proximidades de Irati.

Hoje à tarde,depois do almoço,degustamos um copo de Pivo gelado com bolachas caseiras (aquelas assadas em fornalhas e fermentadas com sal amoníaco).Ainda que esta combinação pareça pouco ortodoxa,faz parte das tradições da minha região.

Visitar a polacada (sou casado com um exemplar da etnia,com olhos de esmeralda,gênio forte,batalhadora e quem me induziu a este mundo fantástico dos pivos com bolachas).

Tarde de domingo.Saio para uma longa caminhada.No caminho vou ruminado a semana,os fatos,as lembranças.De repente me vem à cabeça um texto do cronista Dartagnan Ferraz,aqui do RL,onde ele relata seu lauto desjejum:

"Cuscuz com leite,tapioca,carne de sol com macaxeira,etc..."

Confesso que alguns destes ítens "Nunca vi,não comi,eu só ouço falar" rsrs...Mas,que deu água na boca,ah! isso deu.

São as maravilhas deste nosso regionalismo,neste País de dimensões continentais.Por aqui,um desjejum bem reforçado,seria com broa de centeio,torresmo,manteiga ou banha de porco.Em algumas ocasiões especiais,cuca recheada,pão de requeijão e,na casa dos polacos: "Pierogue",um pastelzinho cozido,recheado com requeijão e batata,envolvido numa espêssa cobertura de nata.É mole,ou quer mais?

Aí,lembrei que minha avó paterna,com sangue de bugre como gostava de vangloriar-se,era uma expert na fabricação das famosas bolachas caseiras (aquelas que incham-se quando mergulhadas na xícara de café) e fui buscar em meus arquivos um texto que escrevi sobre a cozinha onde passei minha infância.

"Darta",se tiver paciência,entre e sente-se à mesa comigo.

A COZINHA

"...E quando as lembranças fazem ranger as dobradiças do tempo,abrem-se as portas ilusórias dos guarda comidas...O ontem que parece tão distante,é ainda,o nosso hoje.Na mesa posta,arabescos de vapor no café das reminiscências”

...E fora imaculadamente branco até o dia em que,no portão,aparecera o mercador de ilusões trazendo a novidade.

_Decalcomanias!...Minhas senhoras.É o que existe de mais novo nos grandes centros.Basta umedece-las e elas irão aderir pra sempre;nas louças,nos esmaltados,até na madeira pintada.

Proferiu o seu discurso lançando um olhar ao guarda comida azul,recém pintado.

Espalharam-se, então,sobre a mesa,as flores,os animais,as frutas e algumas paisagens.

As duas senhoras,encantadas,optaram pelas frutas. De posse de uma pequena bacia cheia d´agua,o mascate operou o milagre da reprodução dos figos,das peras,dos morangos...Direto no esmalte branco do fogão "Marumbi".

As mãos do milagreiro,umedecidas ainda,transpareciam um ligeiro tremor e um brilho de satisfação varava-lhe os olhos miudinhos soterrados pelas bochechas ao ouvir soar em uníssono das bocas deslumbradas:

_Oohhh!...Que lindo!...

Desde então o fogão jamais fora o mesmo.Desencadeara-se uma série de cuidados para que nada lhe fosse esbarrado,ainda que levemente,como forma de preservação do viço das cestas de frutas que permaneciam orvalhadas apesar do calor do fogo.

O guarda comida fora acarinhado com algumas flores,brotadas estrategicamente pelas mãos do milagreiro.

Sobre o fogão,agora todo frutado,um pano de parede (peça de enxoval) mostrava nos pontos cuidadosamente bordados,um ninho de pássaros com filhotes,de bicos abertos,sendo alimentados. A frase de efeito,igualmente bordada,envolvia a ninhada com os dizeres:

"Assim como um pássaro volta ao seu ninho,retorna um esposo ao lar que tem carinho".

E naquela casa,alegres retornos ocorreram por uma vida inteira.

Algumas canecas de louça,com motivos frutais,foram então adquiridas.E os cafés passaram a acontecer num clima e ambiente de pomares. O real,oferecendo-se em cores e cheiros pela janelinha de madeira,feita olho mágico a sondar pereiras.O ilusório,desenhado nas laterais do "Marumbi",nos relevos das xícaras,na ágata de bules e chaleiras.

Pelo guarda comida enfileiravam-se nos ganchos as canecas restantes dividindo espaços com mantimentos,temperos,óleos e fermentos.O vidro sextavado,de boca larga,recebeu uma etiqueta ricamente desenhada.As letras,caprichadas,personalizaram-no com o termo:"Salamonhaco",cuja intenção era dizer:Sal amoníaco.O desenho de alguma coisa lembrando biscoitos,tentava justificar a finalidade do “pósinho” branco e mal cheiroso.

Sim!...Era preciso mantê-lo.A mais velha das senhoras era expert no feitio de bolachas caseiras.Armazenava aqueles retângulos,duros feito telhas,em sacos de algodão branco.

_Latas preservam umidade,dizia.Prefiro os sacos para mantê-las "crocantes".

Céus azulavam-se sobre o azul do guarda comida e os céus das bocas experimentavam o manjar dos deuses a cada "telha" umedecida em caneca de café com leite.

Acontecia o "milagre do crescimento" .As bolachas inchavam-se,derretiam-se pela boca,e minúsculas sementinhas de funcho desprendiam-se da massa estimulando o paladar.

Do guarda comida,presa na lata amarela,a vaquinha malhada da manteiga "Santa Rosa" vinha para a mesa,pastando interminavelmente o verde gramado de sua embalagem.E na placidez da cozinha do tempo,o pão caseiro,fatiava-se imaculadamente branco feito o "Marumbi",antes dos decalques.

As tabuas largas do assoalho,corriam de uma para outra janela cruzando em frente ao guarda comida.

Em seu interior havia bem mais que o sustento para o corpo fisico.Guardava-se suprimentos de afetos que ainda hoje,em ternos recordares,caem feito"manah",saciando os instantes em que a alma mostra-se faminta.

Joel Gomes Teixeira