O Artista com olhos de Gnocchi
Era inegavelmente perturbadora a forma como ele encarava a tela em branco. O lápis arriscava riscar a superfície, mas não passava de latência, tentativa, fracasso. Suspirou. Se soubesse um pouco mais da língua brasileira, arrumaria o xingamento cabível para aquela situação.
Pálido como a tela a sua frente, o rapaz havia perdido a conta de quantos dias passaram desde que sentou ali para espairecer e nunca mais saiu.
Doía pensar, mas doía também não fazê-lo. Sentia-se um idiota, um palerma, um nada. Ainda que esquecesse momentaneamente disso quando se levantava para ir a cozinha e era inundado por latidos e línguadas de contentamento. Os animais tinham o poder de transformar a dor em algo aceitável, inexistente até.
Pena que durava tão pouco.
Logo estava ali, de volta ao sortilégio de observar o vazio sem poder preenche-lo, sem conseguir ocupá-lo. Se fosse um pouco mais competente e forte e menos dramático consigo mesmo, já teria afastado as lembranças da cabeça como se faz com um quadro velho e sem valor. Era a dor incumbida em saudade, em memória, em momentos que o torturava. Ele esquecia e, segundos depois, ela estava lá.
Como odiava ser um estranho no ninho, em casa, no mundo. Como detestava ter tudo e insistir no sentimento de que estava vazio, sem nada. Idiota! Burro! Imbecil! É, era isso que ele era, que pensava ser. Não importava, fora nisso que se tornou de qualquer forma.
Se o rapaz estrangeiro ao menos soubesse... Se ele entendesse... Ah, como queria que visse o que vejo ao olhar no espelho. Como queria que soubesse o que sei. Que entendesse o que eu compreendo. Aí sim, ele se apaixonaria pelos mesmos olhos castanhos comuns de Gnocchi, mas tão cheios de significado e carinho, os mesmos pelos quais eu me apaixonei.